Quantos andam aqui?

sexta-feira, 30 de abril de 2010

Por que te ris? Não sei. Porque me quero rir. Mas lá fora chove. Não quero saber. Rio-me. Rio-me. Sinto-me rodopiar para fora de mim, sinto-me sair de mim ao rir tanto. Mas lá fora há desgraças. Não sei. Neste momento estou comigo. Estou no meu mundo. Tudo me parece motivo para rir. Por que te ris? Já te disse que não sei. Mas por que te ris? Porque sou uma criança. Mas por que te ris? Porque as crianças são felizes? Mas por que te ris? Porque sou feliz. Mas lá fora há um mundo a sofrer. Eu sei. Mas rio-me. Preciso de me rir. Preciso de sair de mim. Saio de mim. Vejo-me a planar por cima de mim, por cima de ti. Vejo-me a rir perante todas as situações. Vejo-me mudar de cores, vejo-me aberta, vejo-me clara, transparente, feliz, simples. Por que te ris?

Porque sou eu.

quinta-feira, 29 de abril de 2010

Solidão...
Assim se sentia.
Embora rodeada de barulho, de luzes, de pessoas, de animação, de tecnologia, encontrava-se verdadeiramente só.
Sentia-se numa encruzilhada negra, com caminhos desconhecido à sua frente, sem bússula, vendada, surda, tendo-se apenas a si própria como companhia.
Todo o barulho do mundo que a rodeava não suplantava o silêncio negro que a consumia por dentro.
Era o nada. O nada total e absoluto, e não o nada do qual tudo brota.
Seca, vazia, ressequida, um invólucro quebradiço, de casca de ovo.
Não sabia para onde se dirigir, tudo era tão denso, tudo era tão escuro, para lado nenhum que olhasse encontrava a mais pequena réstia de luz. Tinha os olhos vendados, os ouvidos tapados, as mãos cobertas de pesadas luvas que não a deixavam tactear nada.
Solidão...
Apenas ela se acompanhava.
Apenas podia escutar o coração, a única voz que nem o silêncio forçado dos ouvidos poderia alguma vez calar.
Solidão...
Não via, nem sentia, os amigos, a família, os dias, as noites. Nada sentia.
Estava vazia, totalmente vazia, a sua essência há muito que se esfumara na eterna busca de quem era. Já não era ninguém.
Sem ver, sem cheirar, sem sentir, sem ouvir.
Apenas guiada por uma voz interior, que a fazia seguir por trilhos que ninguém mais compreendia, que ninguém mais entendia. Trilhos que a magoavam, que a feriam, que feriam quem a rodeava.
Mas trilhos que ela sabia, sem que alguém lho tivesse dito, porque era surda ao Mundo, que tinha que seguir.
Trilhos que doíam, que cortavam, que dilaceravam, mas que a enforteciam.
Sabia que quando chegasse ao seu final, encontraria a audição perdida, a visão que a abandonara, voltaria a sentir, voltaria a cheirar, voltaria a viver.
Até lá, sofria em silêncio essa solidão que não a abandonava, que a fazia ter medo a cada momento de dar um passo em falso, que a sufocava, que a fazia tremer sem saber por que finos fios caminhava, sempre receosa de cair num abismo do qual sabia ser incapaz de se levantar por não ver, não cheirar, não sentir, não ouvir.
Era a solidão total, completa e absoluta. De que lhe servia todo o Mundo de cenário, se era incapaz de o apreciar?...

Para a Fábrica de Letras, "Abismo"

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Troveja, lá fora.
Aqui estou quente, confortável, tapada, morna.
Lá fora, o vento uiva, os trovões ribombam, a chuva fustiga a janela.
Insensivelmente, quisera eu estar lá fora.
Sentir essas grossas pingas de água baterem-me na cara.
Lavarem-me.
Vou lá para fora, não me interessa o calor que deixo para trás.
Vou lá para fora, não me interessa o certo que aqui tenho, o conforto, os lençóis.
Quero sentir-me una com a chuva que cai, com as nuvens pesadas e densas que cobrem o céu imenso. Sentir-me una com este vento furioso, eu própria sou o vento furioso, não a calma brisa que afaga as folhas das árvores, mas esta intempérie que quebra ramos de madeira fortes e antigos.
Deixo a minha alma voar, deixo o meu corpo quebrar ao sabor do vento cruel.
Não sei para onde vou, não sei que caminhos estou a percorrer.
O certo, o conforto, o estável...
Tudo ficou lá atrás. Muito lá atrás.
Quero lembrar-me de como era o meu quarto. De como eram os meus lençóis. Não consigo, a memória falha-me.
Seria realmente quente?
Já não o sei.
Sei que aqui fora há trovoada.
Fui eu que escolhi estar aqui fora. Fui eu que escolhi a Natureza sobre o que conhecia.
E de repente...
De repente sinto-me acolhida.
Não, a chuva já não me molha, as pedras já não ferem os meus pés descalços, a pequena mochila que trouxe comigo já não me pesa porque se desintegrou. O vento já não me assusta e os raios não me acertam.
Sinto que esta força, este espírito, esta energia, esta Natureza, me aceita como filha dela.
Tudo o que é acessório desapareceu.
Estou simplesmente eu...
Eu, a minha alma, o meu espírito.
Continua a trovejar, mas por qualquer razão este sempre foi o meu som preferido.
A cada trovão, uma sensação nova de acolhimento.
Quão desconfortáveis agora me parecem aqueles lençóis!
Quão estranhos aqueles apetrechos que usava nos meus pés.
Agora sinto esta terra debaixo de mim.
Agora sou a tempestade que assola a terra, sou o vento que bate nas árvores, sou a chuva que tudo molha e limpa, porque eu própria estou molhada e limpa.
Estas gotas de água, primeiramente incómodas, formam a minha nova roupa.
Aqui estou.
Troveja.
A noite é escura, mas eu tudo consigo ver, tudo consigo sentir.
Troveja.
Mas eu própria sou o trovão, não há como diferenciar o seu rugido da minha voz.
Vejo-me vestida dos mais cintilantes e puros diamantes, as gotas de água que escorrem furiosamente por cada folha, por cada tronco, e ao mesmo tempo eu sou cada folha, cada tronco.
Quão distante me parece o conforto longínquo de um quarto, de uns sapatos, de um aquecedor...
Agora estou em casa...
A Natureza acolheu-me.
A ela regresso.
Troveja, lá fora.
Trovejo... trovejo, na tentativa de chamar mais almas perdidas para que a mim, para que à Natureza, regressem, saindo do abismo triste e escuro construído pela raça humana...

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Mais um cheirinho do que hei de publicar =)

     "Percebendo que a filha estava morta de cansaço, Roberta agradeceu uma vez mais a Julião “pelo magnífico jantar e calorosa recepção com que nos presenteou, e por toda a sua ajuda”.

     - Sim, Juma, obrigada – disse também Amélia, tão cansada que já mal abria os olhos – Diverti-me muito.

     Talvez por esse facto não se tenha dado conta do abraço ligeiramente mais apertado que o seu professor lhe deu, ou do beijo um tudo nada mais intenso e não tão no centro da face como seria politicamente correcto. Nem Julião, pouco habituado a beber vinho à refeição, e muito menos a completar a noite com um Porto, se deu conta de que o fizera. Ou talvez se tivesse dado, não o querendo admitir a si próprio. Perpassava-o uma sensação de perigo, de desejo pelo proibido, e o proibido nesse momento era Amélia.
Há muito, muito tempo que não tinha uma mulher nos braços, e sentiu o desejo invadi-lo. Não era correcto, bem o sabia, e talvez fosse apenas o efeito do álcool no seu corpo. Mas pela primeira vez observou não Mia a aluna mas Amélia Miranda a mulher.

     Sentiu a súbita necessidade de não a deixar largar, sentiu a vontade incontrolável de lhe pedir que ficasse, independentemente de ser menor de idade, independentemente de estar com a mãe ao lado.
Assustado com os seus próprios sentimentos, que ainda não conseguia identificar por completo, libertou-se de Amélia quase com aspereza, dando graças por ela estar tão ensonada que não se dava conta. No entanto, Roberta dera-se conta de tudo. Juma pressentiu o olhar dela sobre si, indagador, penetrante, e, acima de tudo, reprovador. Como se de repente tivesse entendido tudo. Cada “querida Amélia” que ele lhe tinha dirigido, embora não tivesse tido para si nenhum significado mais profundo, havia já sido interpretado por Roberta em toda a sua profundidade.

     Evitando os olhares de Roberta, Julião fechou tão correctamente quanto possível a porta da rua. Seguidamente, encostando-se à parede, deixou-se escorregar até ao chão, atónito com o que acabara de descobrir. Levando mãos à cabeça, murmurava “é impossível, é impossível”.

     Sem saber como nem porquê, quando nem onde, Amélia, a doce Amélia, a suave Amélia, a perfeita Amélia, fora-se entranhando no seu íntimo. Já há uns dias, quando ela fora para o hospital, Juma se dera conta de que ela não era para si uma mera aluna como Laura, ou Claudette. Era uma amiga.

     Mas hoje…

     O que ele sentira hoje não era o que se sentia por uma mera amiga.

     Sentia-se atraído por ela, e nem sabia ao certo quando isso começara.

     Recordava-se agora de todas as aulas em que, sem se dar conta, aproveitava cada pretexto para estar perto de Amélia. Recordava-se de todas as alturas em que por qualquer pormenor que poderia parecer insignificante, procurara tocar nas suas mãos, para corrigir a posição, procurara tocar nas suas costas, para que a postura fosse mais erecta, procurara que Amélia fosse o seu par para demonstrar certos passos às restantes alunas…

     E ao mesmo tempo em que se ia lembrando disto, forçava-se a pensar que deveria ser tudo uma ilusão, ela era aluna e ele professor, nada mais natural que ele tivesse que a corrigir. Era como se um professor ou um mestre de um qualquer instrumento musical não tocasse no aluno para corrigir a posição das mãos!

     No entanto, apesar de tentar assim aplacar a sua consciência, algo existia que lhe dizia claramente que estava à beira do abismo: estava apaixonado por Amélia Miranda, a sua talentosa aluna. Estava atraído irremediavelmente por ela, apenas assim se explicava que tentasse por todos os meios estar próximo dela, tocá-la, corrigi-la.

     Abismo. Ao pé dele se encontrava. E não sabia que passo dar para não cair nesse buraco negro que seria a sua perdição."

in Livro com título por definir ;)

segunda-feira, 5 de abril de 2010

E o silêncio continua.... transformando-se num abismo

E ali estava. Novamente.
Sozinho no meio de uma multidão de silêncios diferentes e agudos.
Sem saber o que pensar, sem saber como agir, sem saber como interpretar tantas reacções contrárias e ambíguas.
Sem saber como ter coragem para enfrentar o que o futuro lhe reservava.
No meio de tanto silêncio, a sua alma ansiava por uma voz apenas. Por um contacto apenas.
E esse contacto não chegava.
Não podia saber que do outro lado da parede, ela se encontrava com o seu telemóvel, sempre, sempre, esperando, desesperando, vivendo enquanto definhava.
No mesmo silêncio abismal se encontrava ele, tão perto e tão longe dela, preso numa sala preta, sem janelas, com um ar bafiento e denso que não o deixava respirar, que o sufocava. Queria andar e não conseguia, o preto denso que inundava a sala era mais pesado que todo o peso do mundo concentrado nele próprio.
Abafava.
Sufocava.
Queria ir ao encontro dela, mas todo um mundo de convenções sociais os separavam. Esse mundo era a parede entre ambos.
Quais marionetas sem vida, presas pelo fio a um desconhecido manipulador, encontravam-se a escassos centímetros um do outro. Separados por uma parede. Uma parede maior que o mundo.
Uma parede negra de silêncio e desconhecimento.
Desesperavam pela companhia inatingível que poderiam proporcionar.
Ela, vivendo, definhava ao lado do telemóvel morto.
Ele, sufocando, queria romper aquele abismo denso e condensado, negro e faminto, gélido, que o separava dela.
E toda a distância entre ambos se reduzia a míseros centímetros maiores que o Universo.


Para a Fábrica de Letras, sob o tema "abismo".

Relaciona-se com a postagem "Um silêncio que dói", neste mesmo blog.

Um olhar apenas

Nos teus olhos cor da madeira escura encontro um abismo. Encontro neles promessas de paixões por realizar, encontro neles promessas de felicidade por encontrar, encontro neles um mundo por descobrir.
Encontro neles a janela para a tua alma, e ainda assim manténs os teus olhos fechados para mim.
Nos teus olhos cor do carvalho velho e da cortiça antiga oiço palavras de amor nunca proferidas, oiço uma melodia quente e terna.
Esses olhos vêem-me realmente, e eu quero esconder-me de ti; é impossível, tu viste-me. Não me olhaste apenas, viste-me, conheces-me, sabes a matéria de que sou feita, e no entanto continuas a correr umas cortinas nos teus olhos, nas tuas janelas.
Deixas-me à beira da loucura com tantas palavras que os teus olhos dizem, entras na minha mente, apenas a recordação deles me faz andar à roda.
São duas janelas que me fazem sentir à beira de um precipício, olhas-me e desvias o olhar, entranhas-te de um modo suave e eficaz, deixas-me sem saber o que fazer.
Não.
Não quero mais este abismo para mim.
Fecho os meus próprios olhos para sair daqui, mas não consigo.
O teu olhar penetra a minha mente, persegue-me, não me deixa em paz, continua a empurrar-me para o desconhecido mesmo que eu tente fugir.
Tu não me deixas.
Prendeste-me a ti com duas amêndoas escuras, ternas e quentes.
Estou louca.
A cada passo que dou, sinto a tua presença, os teus olhos indagadores.
Eis que chego ao último centímetro de chão antes do precipício que leva ao desconhecido.
Quero fugir de ti, quero chegar a ti.
E a culpa é do teu olhar. Um olhar que fere, que magoa.
Fecho os meus olhos.
Inspiro fundo.
E dou mais um passo.
Caio neste abismo.
O que me esperará no fim?


Texto para Fábrica de Letras, para o desafio "Silêncio"