Sinto-me cansada e desiludida. Sinto-me fria e desconfortável.
Porém, ao chegar a este lugar, a este Templo, sei que cheguei ao meu lar.
Deixo que os suaves aromas a cores quentes e a corpos lavados se apoderem de mim.
Relaxo.
Relaxo e recordo. [As memórias fluem, dotadas de vida própria, como se não dependesse de mim bloqueá-las ou chamá-las.]
Como o mundo e a vida me pareciam maavilhosos!
A Liberdade tinha um forte cheiro a rosa que desabrocha e assemelhava-se a um cavalo selvagem e indomável. Forte. E sim, indubitavelmente branco, puro, fogoso, saudável, possante.
Ah!, mas como esse cavalo se mostrou frio e insensível para com todos os que o quiseram possuir pela força!
Era impossível, e eu devia sabê-lo.
Este cavalo nunca seria meu; aliás, nunca será.
Travei uma dura luta com ele.
Corri; acompanhei-o para todos os lugares, junto a ele dormi.
A sei lado acordei.
Juntos fomos felizes.
Juntos percorremos o Mundo.
Mas ele nunca foi meu.
Nunca o montei, nunca pertencemos realmente um ao outro. Tal como a tantos outros antes de mim, este cavalo acabava de renunciar à sua condição.
Contrasenso?
Não.
Acabo de perceber que, tal como tudo o resto, é uma questão de lógica.
Para eu o possuir e obter o que ele personificava, ele perderia o que era. Perdia a sua essência. Perdia-se a si próprio.
Qual seria então o preço do que eu ambicionava?
Seria necessário haver uma perda por parte de um ser vivo para eu obter o que tanto desejava?
Então não mais acordei junto dele.
Não mais dormi, aconchegando-me a ele.
Não mais percorremos terras e lugares
Então...
Então parti.
Fiz uma longa viagem de regresso.
Pensei em muita coisa.
Pensei no mistério da Vida e no modo ingóbil que alguns seres usam para humilhar, para rebaixar, para ferir física, mental e psicologicamente.
Tenho a certeza de que não há ninguém que escape a esta dura condição própria do ser humano.
Por quê?
Porque no fundo nunca seremos livres.
Nunca possuiremos tal cavalo branco, que tantas esperanças acalenta a tantos e tantos, do mais miserável escravo ao mais poderoso milionário.
Somos todos prisioneiros de algo.
Do Amor.
Da Ganância.
Da Ambição.
Da Vaidade.
Da Beleza.
Do Trabalho.
De um homem.
De uma mulher.
De um animal.
De uma Árvore.
De uma Planta.
Do Dinheiro.
Para onde quer que olhemos, somos prisioneiros.
Tudo o que é vivo e palpável neste mundo, tudo o que é racionalmente irracional ou irracionalmente racional é prisioneiro.
Durante a minha viagem pensei muito sobre isto. E não encontrei nada livre.
Uma flor depende da água e do sol.
Um pássaro depende da comida e do ninho.
Um Homem depende de amor, saúde, dinheiro, poder, chantagens, tanta coisa... roupas, carros, estradas.
Afinal, o mais racional dos seres é o menos livre.
Se racional equivale a preso... Será uma faculdade boa? Não seria melhor ser irracional, um animal selvagem, que depende apenas do que lhe é dado naturalmente e não daquilo que fabrica?
Será, afinal de contas, assim tão bom ser racional?
No fim da minha viagem, sentia-me desconfortável pelas conclusões a que chegara.
Dói-me a Liberdade que não possuo.
Dói-me a Liberdade que nunca possuí e nunca, numa eternidade de momentos, possuirei.
Sinto-me fria e desconfortável, e nem o doce calor do lar me conforta. Ele é apenas mais uma das coisas de que irremediavelmente dependo.
E então... tomo uma decisão.
Tal como o resto do Mundo, vou fingir que sou livre.
Vou deixar que me toquem, que me envolvam, que me amem, que me falem, que me ofereçam objectos, convencendo-me a mim própria de que é essa a minha vontade.
Fingindo que não dependo de nada se não de mim.
Fazendo de conta que o calor de lares e corpos que me rodeiam e envolvem apenas lá estão porque eu quero. [porque é essa a minha livre vontade].
Acreditando que não dependo deles.
E, no fundo, sabendo intimamente que não sou livre.
Tendo consciência, com a autoridade de saber adquirido, que apenas uma coisa é livre.
O cavalo branco, puro, fogoso, possante, chamado Liberdade. Só ele é livre.
Actuarei neste palco que é a Vida nunca me esquecendo disso mas tentando recalcá-lo.
Escrito a 13 de Março de 2003, aos 18 anos. As palavras entre parêntesis rectos referem-se ao que hoje acrescentei. Não o fiz mais para me manter o mais fiel possível à versão original do texto.
