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terça-feira, 18 de agosto de 2015

Fecho os olhos

Fecho os olhos e evado-me.
Saio deste mundo tão correcto, tão social, tão regrado, tão castrador no fundo!
Quisera ser livre, quisera ter coragem de gritar aos quatro ventos as minhas realidades, as cores com que pinto esta tela que é a minha vida.
Fecho os olhos e evado-me, vejo um arco-íris dentro dos meus olhos, brilhante, colorido, aconchegante, divertido, aventureiro.
Perco-me nele, percorro nele caminhos que quando abro os olhos não existem mais, pois tudo é cinzento, preto, morto, amorfo.
Fecho os olhos e evado-me, fujo desta realidade que me sufoca, que me faz ter que adaptar a tudo e todos.
Não mais, não quero mais!
Quero gritar, quero despir-me de preconceitos e regras que me foram impostas e que não me fazem sentido, quero ter a coragem de pular, sentir, viver dentro deste meu arco-íris ocular, invisível a todos os outros que não eu própria.
Fecho os olhos, evado-me, e percebo que ninguém me conhece, apenas eu.
Saberás tu, porventura, o que penso, o que acredito, o que me move?
Queres ouvir-me? Queres escutar-me?
Ouvir e escutar pressupõe saíres dessa tua realidade cinzenta, maniqueísta, dual.
Anda!
Quero mostrar-te as cores que a vida pode ter, liberta-te desse jugo que trazes às costas.
Ele já não é meu, repudio-o veementemente, não quero ter nada a ver com ele, magoa-me a pele, magoa-me o espírito.
Olha!
Vê quantas realidades de branco há. E agora, já viste aquele rosa? Todas as suas variantes? Todas as suas cambiantes? Fixemo-nos nele... por que é assim? Quem o criou assim? Onde começa e acaba cada uma das suas diferenças? Contempla-o. Contemplo-o. É-me mais precioso que qualquer regra ou convenção social.
Fecho os olhos e evado-me, tenho tanto por descobrir no meu mundo tão próprio...
Não quero mais estas regras, não quero mais estas maneiras de estar, quero ser eu própria, quero que me ouças, gostava que me escutasses, há tanto por descobrir!
Anda!
Despe-te, liberta-te do que te prende, sê tu própria uma vez mais, na minha companhia!
Anda.
Fecha os olhos comigo. E evade-te da tua prisão auto-infligida.
Deixa-me apreciar o meu arco-íris, na promessa que descobrirás também o teu. Tão pessoal e instransmissível quanto o meu.
Fechemos juntas os olhos, evadamo-nos em conjunto, percorramos em boa companhia a descoberta do nosso verdadeiro eu.





quinta-feira, 9 de julho de 2015

Ansiedade ansiosa.

Esta ansiedade que me consome não é saudável.
Não me deixa respirar, sinto-me percorrida por uma corrente eléctrica, milhares de partículas nervosas atravessam o meu corpo.
Pára, escuta, sentes. Consegues sentir? Consegues ouvir o meu coração? Não? Como não? Ele bate mais forte que as ondas negras e agrestes dos mares revoltados, ele faz-se sentir mais presente que os relâmpagos e trovões que incendeiam as paisagens nocturnas transformando-as em dias fora de horas.
Sinto-me tremer, sinto-me vacilar.
Esta ansiedade que me consome não é saudável.
Que queres agora? Deixa-me. Deixa-me padecer deste mal, deixa-me ter dificuldade em conter no meu peito, dentro de mim, enquadrado pelas minhas costelas feitas de osso e vidro este coração, que não pára de bater.
Que queres, volto a dizer-te, deixa-me.
Não olhes para as minhas mãos, elas tremem, talvez incomodem os teus olhos, talvez incomode o teu ser, feito de paz, e calma, e tranquilidade.
Deixa-me padecer deste mal, afasta-te de mim, quero sofrer sozinha, não preciso de te arrastar comigo para este pântano escorregadio, lamacento e sujo que é esta ansiedade que me consome.
Quero respirar. Quero acalmar-me. Lentamente, conto até dez. Finjo que conto, porque esta ansiedade, esta ansiedade ansiosa que me consome, corrói e come por dentro, mal me deixa passar dos primeiros algarismos dos tantos que preciso de contar, sentir, ouvir e escutar até me acalmar.
Um. Dois. Três.
Já me perdi. Tenho que recomeçar. Um, dois, três, quatro. Não, ainda não cheguei lá, voltei a parar a meio, esta ansiedade ansiosa não me deixa ser quem preciso de ser.
Quero respirar fundo e encontrar dentro de mim a paz que necessito para saber respirar, mas perdi essa capacidade. Hoje perdi-a. Amanhã talvez a reencontre, ou talvez não a reencontre. Sabes? Eu não sei.
Eu hoje não sei nada, de nada sei, a não ser que esta ansiedade, esta ansiedade ansiosa que me consome, corrói e come por dentro não me deixa respirar, não me deixa sentir o veludo da vida, a alegria prazerosa que há em aproveitar o momento.
Este meu momento que se quer tão especial está conspurcado e inutilizado por esta ansiedade ansiosa que me percorre cada célula do corpo.
Quere-la?
Ofereço-ta.
Não... não ta ofereço.
Porque esta ansiedade ansiosa que me consome e me guia faz parte de mim, sem ela não seria quem sou, não teria as qualidades que tenho nem a sabedoria que já impregna a minha mente.
Deixa-me, deixa-me padecer sozinha desta ansiedade, preciso dela para respirar, ainda que não me deixe respirar.
Esta ansiedade que me consome não é saudável.
Mas é minha, e comigo a levarei.

Cercos e prisões

Cercas-me. Procuras-me incessantemente, à força, num qualquer movimento contínuo e intemporal, autista quase, repetitivamente, cansativamente.
Cercas-me com as tuas palavras vazias de sentido e de conteúdo, com as tuas acções balofas e desprovidas de significado e substância.
Cercas-me, não te apercebes que sou como a água ou como a areia, constituída por milhares de partículas que quanto mais queres agarrar mais fogem por entre os teus dedos secos e reluzentes, sapudos mesmo.
Não me cerques, sou animal selvagem e bravio, não te deixes iludir pelo meu ar cândido, tranquilo, de menina doce e suave. Não o sou, não te deixes iludir pelo meu ar, sou animal selvagem e bravio, um lince camaleão, adapto-me, moldo-me, mas não perco a minha essência, sou animal selvagem e bravio.
Não confundas as minhas respostas curtas com um qualquer problema de linguagem. Não o tenho, sei dominar as palavras, não as deixo dominarem-me. Elas preenchem-me, uso-as a meu bel prazer. Sou animal selvagem e bravio, não me tentes cercar, quanto mais o fizeres mais escorrerei por entre os teus dedos sem que te apercebas de como o faço.
Sou ágil, felina, esguia, enguia.
Não me cerques, como sempre o fizeste, o que ganhas com isso?
A liberdade não tem preço, funciono ao contrário, dizes-me não e faço sim, queres ver preto mas dou-te branco, convencendo-te que é a necessidade de ser branco que a isso me leva, assegurando-te que o branco é o melhor, vendendo o branco como a salvação deste mundo insane e louco.
Não me cerques, sou um pássaro veloz, de asas feitas de fogo e bico aguçado, bico de diamante, afiado como as garras de um leão ou um dente de vampiro.
Não me cerques, quanto mais o fazes mais eu voo para longe, numa ânsia de recuperar a liberdade que os teus cercos insistem em privar da minha companhia, desde que o Universo existe.
Não me cerques, pois sou livre, não aprisonável, arisca, agreste, animal selvagem e bravio.
Não me cerques.
Sou livre, já te disse.
Não me cerques, desiste, encontra uma outra estratégia qualquer para chegares a mim.
Não me cerques.


quarta-feira, 8 de julho de 2015

Porque escrevo? Não to sei dizer.

Escrevo.
Por que escrevo? Não sei, não to sei dizer, ainda que sondasse as profundezas da minha mente.
Desculpa se te incomodo com estas palavras tontas, vazias de sentido, com estórias insignificantes para o correcto, digno e prazeroso desenrolar da tua vida, para a edificação da tua cultura.
Não escrevo para ti, escrevo para mim.
Escrevo.
Quando escrevo? Não sei, não to sei dizer. Não mo peças, não o farei, não sob pressão como se de um autómato me tratasse.
Sou um universo complexo, denso, profundo, com mistérios insondáveis, constituída por milhares de partículas que se inter-relacionam entre elas sem me pedir licença, com vontades próprias, pensamentos próprios, com vidas próprias e independentes de mim, que as albergo sem saber como. Fazem parte de mim mas não me pertencem realmente, não sei o que pensam, o que sentem, o que dizem, o que respiram, de que se alimentam.
São estas partículas ínfimas, mais pequenas que a milésima parte do milímetro, que me compelem a escrever.
Por quê? Quando? Sobre o quê?
Não sei. Não to sei dizer, ainda que me submeta a uma qualquer sessão de psicoterapia, de psicologia, de psicanálise.
Pergunta-lhes a elas, são elas as responsáveis, têm elas a culpa desta minha situação, situação esta em que me sinto compelida a escrever em modo de transe, sem saber onde os meus dedos me levam, sem saber a que sítios o meu pensamento me conduz. São elas as responsáveis, não eu. Eu sou um mero instrumento, constituído por milhares de partículas independentes, elas possuem-me, são minhas mestras, conduzem-me qual pessoa vendada que não sabe onde vai mas confia.
Escrevo.
Por que escrevo? Não sei. Não to sei dizer, já te disse, repito-te, pergunta-lhes a elas, elas saberão. Poderão não to querer dizer. Não me admiraria, sabes? Nem a mim, ser irracional que conduzem pela arte de junção de letras e palavras, mo dizem.
Escrevo para respirar. Escrevo para viver. Respiro? Vivo? Não sei. Não sei o que é respirar, não sei o que é viver, afinal de contas é tudo relativo, não achas?
Escrevo.
Por que escrevo? Não sei.
Não mo perguntes, já te disse, não me pressiones, não vale a pena.
Escrevo porque sou eu, constituída por estes milhares de partículas que me preenchem sem se darem a conhecer.
Escrevo porque escrevo.

"Não gosto de pessoas"

"Não gosto de pessoas", oiço vezes e vezes sem conta.
"Não gosto de pessoas", referes-me tu, da altivez da tua voz embriagada, mente embriagada com discurso embriagado. "Não gosto do ser humano, é a desgraça da humanidade", continuas a afirmar, enquanto o vazio se apodera do teu olhar.
Quisera contradizer-te.
Quisera abraçar-te e fazer-te ver que o ser humano é complexo, que o ser humano é profundo, que o ser humano dificilmente é raso e simples de se gostar.
"Não gosto de pessoas". Cuidado com esta afirmação tenho eu que ter, pois entranha-se no meu ser, na minha pele, debaixo das minhas unhas.
Quero retirá-la, quero escová-la ainda que isso signifique arrancar a minha própria pele.
Não me posso dar ao luxo de não gostar de pessoas.
"Não gosto de pessoas", continuas tu a gritar em voz baixa, um qualquer pedido de atenção, uma forma estranha e delicada de dizer "quero que gostem de mim".
"Não gosto de pessoas", e estas palavras escavam profundamente o seu lugar dentro da minha mente, insinuam-se de maneira velada, discretamente, como se de um parasita se tratassem, entram em mim sem pedir licença, ficam, gravam-se nos meus pensamentos.
Quisera dizer-te que também eu tenho momentos negros desses, em que não gosto de pessoas, mas depois reflicto.
Não somos todos pessoas?
Não gostas de pessoas? Não gostas de mim? Não gostas de ti? Afinal, de quem não gostas?
Abraço-te em segredo, tento fazer-te chegar a mensagem de que as pessoas são bons alvos para gostarmos.
"Não gosto de pessoas", e de repente esta frase começa a perder força na minha mente.
"Não gosto de pessoas", e de repente um raio de luz força a entrada neste lugar escuro e pesado que é a tua mente embriagada a querer tornar escura e pesada a minha mente, embriagada não de álcool mas de inseguranças.
Gosto de pessoas.
Gosto das lições que as pessoas me ensinam. Gosto das pessoas que me mostram o que eu não quero ser. Gosto de aprender com elas a falsidade, a mentira, o cinismo, a arrogância, o sarcasmo. Gosto de saber estas coisas, gosto de conhecer o que devo evitar.
Gosto de pessoas. Gosto de me tornar forte, adulta, perspicaz. Gosto de chorar, lavando a minha alma, lavando o meu pensamento, destruindo e esvaziando como um balão roto todas as mágoas que as pessoas me causaram. Gosto de olhar para trás e saber que cada pessoa que tu poderias não gostar, do alto da tua razão embriagada e mente dormente por um qualquer barulho infernal que insistes em partilhar com os outros, me ensinou a mim uma lição valiosa para a vida, o nosso bem mais precioso.
"Não gosto de pessoas", afirmas ainda mais uma vez, olhar vazio e triste enquanto ingeres mais poção mágica que te adormeça para este mundo, mas as tuas palavras não encontram já eco em mim. Estou protegida por uma muralha verde esperança, raízes fortes e profundas, abraçada por todo o amor que me rodeia.
"Não gosto de pessoas", tentas uma vez mais, mas já sem convicção.
Olho para ti, escrutino-te, analiso-te, sorrio-te e digo-te sem palavras.
Eu gosto de pessoas.
Gosto inclusivamente de ti, que não gostas de pessoas.



segunda-feira, 6 de julho de 2015

Nuvem preta

     Trago esta nuvem preta dentro de mim.
     Shiu, ninguém sabe dela, é minha, muito minha, trago-a comigo desde que nasci, desde que me lembro de ser gente.
     Esta nuvem preta é a minha prisão e a minha liberdade, aperta-me o peito e os pulmões, não me deixa respirar, compele-me para ser um outro eu, um eu que abomino e desprezo mas que ao mesmo tempo é tão livre.
     Livre ao ponto de não querer saber de opiniões, de convenções, de tradições.
     Livre porque chora, grita, diz o que pensa, fecha as emoções e expressa-se.
     Trago esta nuvem preta dentro de mim.
     Ela é a minha prisão e a minha liberdade.
    Ela faz-me transcender, ela faz-me rir, ela faz-me chorar, ela não me deixa ser indiferente, impassível.
    Esta nuvem preta minha faz-me ser eu, é poderosa, é densa, fecho os olhos e sou conduzida por ela. Giro, rodopio, bailo ao sabor dela, já não sei quem sou, nem o que quero, nem o que é suposto fazer, nem o que devia ser.
    Cresce dentro de mim como uma tempestade indomável, cobre cada centímetro do meu corpo, da minha pele, dos meus órgãos, enche-me de energia vital, transforma-se numa corrente eléctrica que percorre os meus pés, as minhas pernas, o meu corpo, a minha cabeça e não me deixa estar contida.
    Transforma-me a mim, mero ser de pó, num gigante imbatível, numa leoa feroz que não se deixa intimidar.
     Shiu, ninguém sabe dela, é minha, muito minha, como se de uma gémea siamesa se tratasse.
Ninguém sabe dela porque me revisto de uma outra nuvem, branca, pálida, frágil, que é politicamente correcta, que está aqui para me moldar aos ditames de uma sociedade injusta e cruel, formatada para não pensar.
    Odeio esta nuvem preta que trago dentro de mim, mas acarinho-a.
    Ela move-me a pensar nos momentos de irracionalidade, ela é preciosa, ela é minha, muito minha, apenas minha.
    Claro, tu tens uma outra nuvem dentro de ti. Mas não é preta. Será cinzenta, castanha, púrpura, vermelha, não preta. Não, não é a minha nuvem preta, que me deixa ser livre enquanto me acorrenta.
    Trago esta nuvem preta dentro de mim. Shiu, ninguém sabe dela, é minha, muito minha.
    É a minha prisão libertadora.










sábado, 12 de junho de 2010

Onde um sim é um não,

Onde um não é um sim,

Onde o coração quer a razão não deixa,

Onde a razão não convence o coração,

Onde se chora querendo rir

Onde se ri querendo chorar

Onde não se sabe o que se pretende,

Hoje é branco, amanhã é negro,

Onde a certeza é preenchida pela dúvida,

E a dúvida é a única certeza que pode alguma vez existir.

Assim sou eu.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Liberdade

Sento-me e sei que cheguei a casa. Cheguei ao meu destino, ao meu doce lar.
Sinto-me cansada e desiludida. Sinto-me fria e desconfortável.
Porém, ao chegar a este lugar, a este Templo, sei que cheguei ao meu lar.
Deixo que os suaves aromas a cores quentes e a corpos lavados se apoderem de mim.
Relaxo.
Relaxo e recordo. [As memórias fluem, dotadas de vida própria, como se não dependesse de mim bloqueá-las ou chamá-las.]
Como o mundo e a vida me pareciam maavilhosos!
A Liberdade tinha um forte cheiro a rosa que desabrocha e assemelhava-se a um cavalo selvagem e indomável. Forte. E sim, indubitavelmente branco, puro, fogoso, saudável, possante.
Ah!, mas como esse cavalo se mostrou frio e insensível para com todos os que o quiseram possuir pela força!
Era impossível, e eu devia sabê-lo.
Este cavalo nunca seria meu; aliás, nunca será.
Travei uma dura luta com ele.
Corri; acompanhei-o para todos os lugares, junto a ele dormi.
A sei lado acordei.
Juntos fomos felizes.
Juntos percorremos o Mundo.
Mas ele nunca foi meu.
Nunca o montei, nunca pertencemos realmente um ao outro. Tal como a tantos outros antes de mim, este cavalo acabava de renunciar à sua condição.
Contrasenso?
Não.
Acabo de perceber que, tal como tudo o resto, é uma questão de lógica.
Para eu o possuir e obter o que ele personificava, ele perderia o que era. Perdia a sua essência. Perdia-se a si próprio.
Qual seria então o preço do que eu ambicionava?
Seria necessário haver uma perda por parte de um ser vivo para eu obter o que tanto desejava?
Então não mais acordei junto dele.
Não mais dormi, aconchegando-me a ele.
Não mais percorremos terras e lugares
Então...
Então parti.
Fiz uma longa viagem de regresso.
Pensei em muita coisa.
Pensei no mistério da Vida e no modo ingóbil que alguns seres usam para humilhar, para rebaixar, para ferir física, mental e psicologicamente.
Tenho a certeza de que não há ninguém que escape a esta dura condição própria do ser humano.
Por quê?
Porque no fundo nunca seremos livres.
Nunca possuiremos tal cavalo branco, que tantas esperanças acalenta a tantos e tantos, do mais miserável escravo ao mais poderoso milionário.
Somos todos prisioneiros de algo.
Do Amor.
Da Ganância.
Da Ambição.
Da Vaidade.
Da Beleza.
Do Trabalho.
De um homem.
De uma mulher.
De um animal.
De uma Árvore.
De uma Planta.
Do Dinheiro.
Para onde quer que olhemos, somos prisioneiros.
Tudo o que é vivo e palpável neste mundo, tudo o que é racionalmente irracional ou irracionalmente racional é prisioneiro.
Durante a minha viagem pensei muito sobre isto. E não encontrei nada livre.
Uma flor depende da água e do sol.
Um pássaro depende da comida e do ninho.
Um Homem depende de amor, saúde, dinheiro, poder, chantagens, tanta coisa... roupas, carros, estradas.
Afinal, o mais racional dos seres é o menos livre.
Se racional equivale a preso... Será uma faculdade boa? Não seria melhor ser irracional, um animal selvagem, que depende apenas do que lhe é dado naturalmente e não daquilo que fabrica?
Será, afinal de contas, assim tão bom ser racional?
No fim da minha viagem, sentia-me desconfortável pelas conclusões a que chegara.
Dói-me a Liberdade que não possuo.
Dói-me a Liberdade que nunca possuí e nunca, numa eternidade de momentos, possuirei.
Sinto-me fria e desconfortável, e nem o doce calor do lar me conforta. Ele é apenas mais uma das coisas de que irremediavelmente dependo.
E então... tomo uma decisão.
Tal como o resto do Mundo, vou fingir que sou livre.
Vou deixar que me toquem, que me envolvam, que me amem, que me falem, que me ofereçam objectos, convencendo-me a mim própria de que é essa a minha vontade.
Fingindo que não dependo de nada se não de mim.
Fazendo de conta que o calor de lares e corpos que me rodeiam e envolvem apenas lá estão porque eu quero. [porque é essa a minha livre vontade].
Acreditando que não dependo deles.
E, no fundo, sabendo intimamente que não sou livre.
Tendo consciência, com a autoridade de saber adquirido, que apenas uma coisa é livre.
O cavalo branco, puro, fogoso, possante, chamado Liberdade. Só ele é livre.
Actuarei neste palco que é a Vida nunca me esquecendo disso mas tentando recalcá-lo.

Escrito a 13 de Março de 2003, aos 18 anos. As palavras entre parêntesis rectos referem-se ao que hoje acrescentei. Não o fiz mais para me manter o mais fiel possível à versão original do texto.



sábado, 22 de maio de 2010

A alma das palavras... a alma dos humanos... a nossa essência...

Mesa, mesa, mesa, mesa, mesa, mesa, mesa, mesa, mesa, mesa, mesa, mesa, mesa.
O que é isto, o que quer isto dizer?
Poste, poste, poste, poste, poste, poste, poste.
Sol, sol, sol, sol, sol, sol, sol, sol, sol, sol.
Lua, lua, lua, lua, lua, lua, lua, lua.
Riqueza, riqueza, riqueza, riqueza, riqueza.
Estranha similitude esta, entre palavras e essência humana.
Onde está a alma delas?
Onde está a nossa alma?
Onde perdemos a nossa alma, o nosso espírito?
Em que esquina sombria e por que preço nos vendemos?
A quem nos vendemos?
Ao Mal. Apenas pela compra da nossa alma ele se pode infiltrar em nós, levando-nos a cometer tais crimes e a desrespeitar o que de mais sagrado há, o mistério da Vida.
Por que nos vendemos nós?
Por ambição. Por dinheiro. Por inveja. Por prestígio. Por ganância. Por fama. Por fortuna. Por vingança. Por maldade.
Que interessa o motivo?
Motivo, motivo, motivo, motivo, motivo, motivo, motivo, motivo, motivo, motivo, motivo.
Onde está a alma desta palavra? Perdeu-se? Como é isso possível? Ela está aqui à minha frente, leio-a, releio-a, vejo cada uma das suas letras, mas nada encontro. Não há de que a sua alma se perdeu. Mas onde? Por quê? Por que motivo se vendeu?
Por que motivo nos vendemos nós?
Onde se encontra a alma das pessoas?
Onde se enconta a alma das palavras?
Por que motivo fugiu, permitindo que tão mau uso se fizesse das formas onde anteriormente estavam?
Uma palavra sem alma é como uma caixa vazia, oca. Pode-se fazer dela o que se quiser. Não importa. Não tem vida.
Um corpo sem alma é como uma palavra sem alma.
São dois mortos, interagindo um com o outro, sem se importar com a devastação que originam.
Por isso procurarei incessantemente a alma das coisas, a alma das palavras, a minha própria alma.
Procuro...
Alma, alma, alma, alma, alma.
Tento perceber onde se perdeu a alma, para a trazer de volta e assim fazer deste Mundo um sítio melhor.
Procuro.
Alma.
Procuro a alma.
Procuro...
Procuro...
Procuro...
Procuro...
Essência humana. Essência humana. Essência humana.

(Texto escrito a 13 de Março de 2003, aos 18 anos)





A irracionalidade racional do Homem e a luta pela dignidade.

Acordo e vejoa realidade tal como ela se me apresenta. Crua, nua, feroz, insensível e cruel. Por que tem tudo que ser assim? Tão duro? Por que não podemos nós ser como os pássaros, felizes porque cantam, felizes porque voam, felizes porque têm um ninho quente e aconchegante?
Será que os pássaros se ressentem porque têm penas vermelhas em vez de azuis? Será que percebem que por muito que façam nunca deixarão de ser pássaros? Será que se preocupam em saber como eram os seus antepassados ou como serão os seus descendentes daqui a milhões de anos? Será que se preocupam com a morte do sol ou com o desaparecimento da vida?
Ou, por outro lado, serão eles felizes com a sua ignorância cultural? Não é, pois, verdade que quanto menos sabemos mais felizes somos? Por que nos havemos de perguntar por que temos o que não queremos ou por que não temos o que queremos?
Por que ligaremos tanto às coisas materiais e menosprezamos as verdadeiramente importantes?
Na ânsia de ter, o Homem esquece-se de ser.
Se não somos, nunca teremos.
Por que não podemos nós ser como os pássaros, vivendo felizes com o que lhes é dado pela Mãe Natureza de acordo com as suas necessidades? Um pássaro nasce, cresce, reproduz-se e morre, dependendo unicamente do que lhe é oferecido.
Um pássaro não mata um da sua raça só porque o bico é maior ou as suas penas são brancas...
Por que não poderemos nós ser como os pássaros, espertas criações da Mãe Natureza, base de tudo, impulsionadora dos fluxos vitais que correm por cada fibra, por cada milímetro, cada lugar de cada organismo vivo, por mais ínfimo que seja?
Será que a nossa racionalidade, traço de unicidade entre a espécie humana, nos transporta automaticamente para a irracionalidade?
Por que não têm a felicidade, a alegria, o amor e a paz um doce e intenso cheiro a terra molhada, a floresta virgem, a camomila ou a alecrim?
Por que não poderemos nós ser como os pássaros, felizes, despreocupados, vivendo no meio de tais aromas?
Por que teremos nós de ser, a um tempo, racionais e irracionais, construtores e destruidores, inteligentes e acéfalos?
Por que nos preocupamos tanto com a estética e nos desligamos da ética?
Que interessa se a nossa cor de pele é escura ou clara, se somos fortes ou fracos, bonitos ou feios? Tais adjectivos simplificam em demasia o que é naturalmente complexo.
Tudo é efémero. Nunca somos nós a passar pelo tempo, é sempre o tempo que passa por nós. E o físico, o estético, desaparecem. Tal como quando repentinamente se apaga uma luz ou uma vela.
Fica apenas a parte ética, espiritual. Ficam as memórias, ficam as recordações. Mas ficam no escuro, pois é tão raro sobreviverem sem a luz!
É por isso que temos que lutar. Que importa se somos ricos ou pobres! Não é o dinheiro que compra o que de melhor temos. Não é o dinheiro que compra a nossa dignidade.
Nunca poderemos esquecer que a dignidade é tudo o que resta da destruição para que nos encaminhamos.
Sim.
Serei Digna.
Serei digna e será este o meu passaporte para viver como os pássaros.
Parece-me que já consigo sentir, ao fundo do túnel, o adocicado cheiro a camomila, que me vem convidar a viver em paz e harmonia perante o mundo que me rodeia e entre odores que me acalmam e me fazem subir ao Paraíso.
Serei digna.
Serei digna.
Serei digna.
Chegarei ao Paraíso.
Serei digna...


Texto escrito em Março de 2003 (aos 18 anos)




quarta-feira, 19 de maio de 2010

Sinto, penso, acredito, creio, duvido, aceito.

Entro na sala.
Sinto-a cheia, não obstante as poucas, pouquíssimas, quase nenhumas, pessoas que lá se encontram.
Estou nervosa, consciente de cada traço do meu corpo, de cada cabelo fora do sítio, de cada estria que me rasga a pele, num movimento cruel e insensível ao que eu desejo.
Sinto os pares de olhos incisivos a pousarem sobre mim, num riso cruel, gozando do cenário que à sua frente têm.
Sei que tenho que me acalmar, mas não consigo.
O coração bate cada vez mais forte, e sinto as pequenas gotas de suor a formarem-se nas palmas das minhas mãos, que se entrelaçam sem que eu tenha sobre elas qualquer domínio físico ou motor. Sou eu ali, e sou eu fora de mim, a observar-me, a racionalmente tentar controlar as emoções que perpassam o meu ser emocional.
Não me consigo acalmar, a garganta começa a sufocar e já nem sei por que razão estou assim exposta, naquela sala minúscula, semi-vazia mas que sinto cheia.
Consigo ver os sorrisos dos que lá estão, consigo sentir o cheiro da superioridade que julgam ter em relação a mim, a superioridade física, a superioridade mental, a superioridade hierárquica.
Então...
Então tento falar. A minha voz não me responde.
Tento acalmar as batidas cardíacas. Acalma-te!, grito mentalmente para mim própria, sem que nenhum efeito se veja.
Não tenho outro remédio.
Uma vez mais, tenho que me colocar à prova e dispor de meros segundos, compridos como milénios, para me reencontrar.
Fecho os meus olhos e inspiro, não querendo saber se me observam ou não. Estou consciente de tudo, muito mais do que os que me rodeiam possam pensar. Mentalmente, penso que não há pessoas superiores ou inferiores, há pessoas. Mentalmente, penso que não sou inferior a ninguém.
Mentalmente, numa voz cortante, gravo a fogo no meu coração e na minha mente "eu sou capaz".
E então abro os olhos.
Enfrento o que me enfrenta, numa luta de igual para igual.
E venço.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

A paixão de uma vida

Tocar...

Acariciar suavemente as teclas negras e brancas de um teclado, de um piano...
Retirar desse amante sons, melodias, experiências, estados de alma, consolos...
Como pode uma coisa tão física, tão material, tão terreste, traduzir por palavras não ditas a essência de cada um de nós? Fazer-nos rodar, e rodar, e rodopiar, como se quiséssemos agarrar o fundo do nosso ser, ainda que nos seja verdadeiramente impossível conhecê-lo?
Que outra arte, que outro som, transmite tão bem a dualidade humana, sem ser a Música? Ela, como nós, é a um tempo humana e extra-humana, física e espiritual, está em nós e fora de nós, toca-nos e não se deixa ser tocada. Transmite quem somos quando nem nós próprios o sabemos, influencia-nos sem o podermos controlar ou evitar ou forçar.
Nós não a criamos, ela não se deixa ser criada, simplesmente a redescobrimos na sua essência e inocência original, como se atingíssemos o mundo das Ideias de Platão, tal como David aprisionado no bloco de mármore e liberto por Miguel Ângelo.
Assim foram Bach, Mozart, Beethoven, Chopin...todos esses génios, escultores do som, almas superiores com experiências de tantas vidas, redescobrindo essa música eterna, que nos diz sem dizer, que nos fala sem falar, que nos mostra quem somos e o que sentimos antes de nós próprios o sabermos.
Todos nós nos procuramos incansavelmente, tal como procuramos entender as palavras não ditas mas tão presentes, concretas e físicas, de uma obra musical... Ela é simultaneamente corpo e espírito, físico e etéreo, da mesma maneira que nós somos duplos, um corpo terrestre e uma alma qye absorve todas as experiências...
Que outra razão para que ela, Música, nos toque tanto? Nos eleve tanto? Que outra razão para batalharmos tanto para a conhecer, para a aprender? Doidos... como se isso fosse possível... como se nos pudéssemos realmente conhecer a nós próprios! Seremos eternamente auto-desconhecidos - e assim é a essência da Música.
Toca-nos, mas não nos deixa tocá-la... é no entanto na nossa eterna busca pelo que ela é que nos auto-procuramos.
Ela traz no seu seio toda a História da Humanidade, todas as alegrias e tristezas, todas as fatalidades e milagres, todos os sucessos e fracassos, todos os sentimentos humanos bons e maus, precisamente porque é superior a nós.
É na sua busca que nos buscamos, é na sua prática e aperfeiçoamento que nos aperfeiçoamos, é cada vez que a libertamos do seu estado físico e terrestre que nos auto-libertamos deste corpo e deste mundo que não escolhemos e atingimos um breve relance do que há para além disto; é nesta procura que a nossa alma conhece verdadeiramente autênticos momentos de liberdade e felicidade...

Repescagem de uma postagem da Secretária, agora para o desafio "Paixão" da Fábrica das Letras.

sexta-feira, 30 de abril de 2010

Por que te ris? Não sei. Porque me quero rir. Mas lá fora chove. Não quero saber. Rio-me. Rio-me. Sinto-me rodopiar para fora de mim, sinto-me sair de mim ao rir tanto. Mas lá fora há desgraças. Não sei. Neste momento estou comigo. Estou no meu mundo. Tudo me parece motivo para rir. Por que te ris? Já te disse que não sei. Mas por que te ris? Porque sou uma criança. Mas por que te ris? Porque as crianças são felizes? Mas por que te ris? Porque sou feliz. Mas lá fora há um mundo a sofrer. Eu sei. Mas rio-me. Preciso de me rir. Preciso de sair de mim. Saio de mim. Vejo-me a planar por cima de mim, por cima de ti. Vejo-me a rir perante todas as situações. Vejo-me mudar de cores, vejo-me aberta, vejo-me clara, transparente, feliz, simples. Por que te ris?

Porque sou eu.

quinta-feira, 29 de abril de 2010

Solidão...
Assim se sentia.
Embora rodeada de barulho, de luzes, de pessoas, de animação, de tecnologia, encontrava-se verdadeiramente só.
Sentia-se numa encruzilhada negra, com caminhos desconhecido à sua frente, sem bússula, vendada, surda, tendo-se apenas a si própria como companhia.
Todo o barulho do mundo que a rodeava não suplantava o silêncio negro que a consumia por dentro.
Era o nada. O nada total e absoluto, e não o nada do qual tudo brota.
Seca, vazia, ressequida, um invólucro quebradiço, de casca de ovo.
Não sabia para onde se dirigir, tudo era tão denso, tudo era tão escuro, para lado nenhum que olhasse encontrava a mais pequena réstia de luz. Tinha os olhos vendados, os ouvidos tapados, as mãos cobertas de pesadas luvas que não a deixavam tactear nada.
Solidão...
Apenas ela se acompanhava.
Apenas podia escutar o coração, a única voz que nem o silêncio forçado dos ouvidos poderia alguma vez calar.
Solidão...
Não via, nem sentia, os amigos, a família, os dias, as noites. Nada sentia.
Estava vazia, totalmente vazia, a sua essência há muito que se esfumara na eterna busca de quem era. Já não era ninguém.
Sem ver, sem cheirar, sem sentir, sem ouvir.
Apenas guiada por uma voz interior, que a fazia seguir por trilhos que ninguém mais compreendia, que ninguém mais entendia. Trilhos que a magoavam, que a feriam, que feriam quem a rodeava.
Mas trilhos que ela sabia, sem que alguém lho tivesse dito, porque era surda ao Mundo, que tinha que seguir.
Trilhos que doíam, que cortavam, que dilaceravam, mas que a enforteciam.
Sabia que quando chegasse ao seu final, encontraria a audição perdida, a visão que a abandonara, voltaria a sentir, voltaria a cheirar, voltaria a viver.
Até lá, sofria em silêncio essa solidão que não a abandonava, que a fazia ter medo a cada momento de dar um passo em falso, que a sufocava, que a fazia tremer sem saber por que finos fios caminhava, sempre receosa de cair num abismo do qual sabia ser incapaz de se levantar por não ver, não cheirar, não sentir, não ouvir.
Era a solidão total, completa e absoluta. De que lhe servia todo o Mundo de cenário, se era incapaz de o apreciar?...

Para a Fábrica de Letras, "Abismo"

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Troveja, lá fora.
Aqui estou quente, confortável, tapada, morna.
Lá fora, o vento uiva, os trovões ribombam, a chuva fustiga a janela.
Insensivelmente, quisera eu estar lá fora.
Sentir essas grossas pingas de água baterem-me na cara.
Lavarem-me.
Vou lá para fora, não me interessa o calor que deixo para trás.
Vou lá para fora, não me interessa o certo que aqui tenho, o conforto, os lençóis.
Quero sentir-me una com a chuva que cai, com as nuvens pesadas e densas que cobrem o céu imenso. Sentir-me una com este vento furioso, eu própria sou o vento furioso, não a calma brisa que afaga as folhas das árvores, mas esta intempérie que quebra ramos de madeira fortes e antigos.
Deixo a minha alma voar, deixo o meu corpo quebrar ao sabor do vento cruel.
Não sei para onde vou, não sei que caminhos estou a percorrer.
O certo, o conforto, o estável...
Tudo ficou lá atrás. Muito lá atrás.
Quero lembrar-me de como era o meu quarto. De como eram os meus lençóis. Não consigo, a memória falha-me.
Seria realmente quente?
Já não o sei.
Sei que aqui fora há trovoada.
Fui eu que escolhi estar aqui fora. Fui eu que escolhi a Natureza sobre o que conhecia.
E de repente...
De repente sinto-me acolhida.
Não, a chuva já não me molha, as pedras já não ferem os meus pés descalços, a pequena mochila que trouxe comigo já não me pesa porque se desintegrou. O vento já não me assusta e os raios não me acertam.
Sinto que esta força, este espírito, esta energia, esta Natureza, me aceita como filha dela.
Tudo o que é acessório desapareceu.
Estou simplesmente eu...
Eu, a minha alma, o meu espírito.
Continua a trovejar, mas por qualquer razão este sempre foi o meu som preferido.
A cada trovão, uma sensação nova de acolhimento.
Quão desconfortáveis agora me parecem aqueles lençóis!
Quão estranhos aqueles apetrechos que usava nos meus pés.
Agora sinto esta terra debaixo de mim.
Agora sou a tempestade que assola a terra, sou o vento que bate nas árvores, sou a chuva que tudo molha e limpa, porque eu própria estou molhada e limpa.
Estas gotas de água, primeiramente incómodas, formam a minha nova roupa.
Aqui estou.
Troveja.
A noite é escura, mas eu tudo consigo ver, tudo consigo sentir.
Troveja.
Mas eu própria sou o trovão, não há como diferenciar o seu rugido da minha voz.
Vejo-me vestida dos mais cintilantes e puros diamantes, as gotas de água que escorrem furiosamente por cada folha, por cada tronco, e ao mesmo tempo eu sou cada folha, cada tronco.
Quão distante me parece o conforto longínquo de um quarto, de uns sapatos, de um aquecedor...
Agora estou em casa...
A Natureza acolheu-me.
A ela regresso.
Troveja, lá fora.
Trovejo... trovejo, na tentativa de chamar mais almas perdidas para que a mim, para que à Natureza, regressem, saindo do abismo triste e escuro construído pela raça humana...

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Mais um cheirinho do que hei de publicar =)

     "Percebendo que a filha estava morta de cansaço, Roberta agradeceu uma vez mais a Julião “pelo magnífico jantar e calorosa recepção com que nos presenteou, e por toda a sua ajuda”.

     - Sim, Juma, obrigada – disse também Amélia, tão cansada que já mal abria os olhos – Diverti-me muito.

     Talvez por esse facto não se tenha dado conta do abraço ligeiramente mais apertado que o seu professor lhe deu, ou do beijo um tudo nada mais intenso e não tão no centro da face como seria politicamente correcto. Nem Julião, pouco habituado a beber vinho à refeição, e muito menos a completar a noite com um Porto, se deu conta de que o fizera. Ou talvez se tivesse dado, não o querendo admitir a si próprio. Perpassava-o uma sensação de perigo, de desejo pelo proibido, e o proibido nesse momento era Amélia.
Há muito, muito tempo que não tinha uma mulher nos braços, e sentiu o desejo invadi-lo. Não era correcto, bem o sabia, e talvez fosse apenas o efeito do álcool no seu corpo. Mas pela primeira vez observou não Mia a aluna mas Amélia Miranda a mulher.

     Sentiu a súbita necessidade de não a deixar largar, sentiu a vontade incontrolável de lhe pedir que ficasse, independentemente de ser menor de idade, independentemente de estar com a mãe ao lado.
Assustado com os seus próprios sentimentos, que ainda não conseguia identificar por completo, libertou-se de Amélia quase com aspereza, dando graças por ela estar tão ensonada que não se dava conta. No entanto, Roberta dera-se conta de tudo. Juma pressentiu o olhar dela sobre si, indagador, penetrante, e, acima de tudo, reprovador. Como se de repente tivesse entendido tudo. Cada “querida Amélia” que ele lhe tinha dirigido, embora não tivesse tido para si nenhum significado mais profundo, havia já sido interpretado por Roberta em toda a sua profundidade.

     Evitando os olhares de Roberta, Julião fechou tão correctamente quanto possível a porta da rua. Seguidamente, encostando-se à parede, deixou-se escorregar até ao chão, atónito com o que acabara de descobrir. Levando mãos à cabeça, murmurava “é impossível, é impossível”.

     Sem saber como nem porquê, quando nem onde, Amélia, a doce Amélia, a suave Amélia, a perfeita Amélia, fora-se entranhando no seu íntimo. Já há uns dias, quando ela fora para o hospital, Juma se dera conta de que ela não era para si uma mera aluna como Laura, ou Claudette. Era uma amiga.

     Mas hoje…

     O que ele sentira hoje não era o que se sentia por uma mera amiga.

     Sentia-se atraído por ela, e nem sabia ao certo quando isso começara.

     Recordava-se agora de todas as aulas em que, sem se dar conta, aproveitava cada pretexto para estar perto de Amélia. Recordava-se de todas as alturas em que por qualquer pormenor que poderia parecer insignificante, procurara tocar nas suas mãos, para corrigir a posição, procurara tocar nas suas costas, para que a postura fosse mais erecta, procurara que Amélia fosse o seu par para demonstrar certos passos às restantes alunas…

     E ao mesmo tempo em que se ia lembrando disto, forçava-se a pensar que deveria ser tudo uma ilusão, ela era aluna e ele professor, nada mais natural que ele tivesse que a corrigir. Era como se um professor ou um mestre de um qualquer instrumento musical não tocasse no aluno para corrigir a posição das mãos!

     No entanto, apesar de tentar assim aplacar a sua consciência, algo existia que lhe dizia claramente que estava à beira do abismo: estava apaixonado por Amélia Miranda, a sua talentosa aluna. Estava atraído irremediavelmente por ela, apenas assim se explicava que tentasse por todos os meios estar próximo dela, tocá-la, corrigi-la.

     Abismo. Ao pé dele se encontrava. E não sabia que passo dar para não cair nesse buraco negro que seria a sua perdição."

in Livro com título por definir ;)

segunda-feira, 5 de abril de 2010

E o silêncio continua.... transformando-se num abismo

E ali estava. Novamente.
Sozinho no meio de uma multidão de silêncios diferentes e agudos.
Sem saber o que pensar, sem saber como agir, sem saber como interpretar tantas reacções contrárias e ambíguas.
Sem saber como ter coragem para enfrentar o que o futuro lhe reservava.
No meio de tanto silêncio, a sua alma ansiava por uma voz apenas. Por um contacto apenas.
E esse contacto não chegava.
Não podia saber que do outro lado da parede, ela se encontrava com o seu telemóvel, sempre, sempre, esperando, desesperando, vivendo enquanto definhava.
No mesmo silêncio abismal se encontrava ele, tão perto e tão longe dela, preso numa sala preta, sem janelas, com um ar bafiento e denso que não o deixava respirar, que o sufocava. Queria andar e não conseguia, o preto denso que inundava a sala era mais pesado que todo o peso do mundo concentrado nele próprio.
Abafava.
Sufocava.
Queria ir ao encontro dela, mas todo um mundo de convenções sociais os separavam. Esse mundo era a parede entre ambos.
Quais marionetas sem vida, presas pelo fio a um desconhecido manipulador, encontravam-se a escassos centímetros um do outro. Separados por uma parede. Uma parede maior que o mundo.
Uma parede negra de silêncio e desconhecimento.
Desesperavam pela companhia inatingível que poderiam proporcionar.
Ela, vivendo, definhava ao lado do telemóvel morto.
Ele, sufocando, queria romper aquele abismo denso e condensado, negro e faminto, gélido, que o separava dela.
E toda a distância entre ambos se reduzia a míseros centímetros maiores que o Universo.


Para a Fábrica de Letras, sob o tema "abismo".

Relaciona-se com a postagem "Um silêncio que dói", neste mesmo blog.

Um olhar apenas

Nos teus olhos cor da madeira escura encontro um abismo. Encontro neles promessas de paixões por realizar, encontro neles promessas de felicidade por encontrar, encontro neles um mundo por descobrir.
Encontro neles a janela para a tua alma, e ainda assim manténs os teus olhos fechados para mim.
Nos teus olhos cor do carvalho velho e da cortiça antiga oiço palavras de amor nunca proferidas, oiço uma melodia quente e terna.
Esses olhos vêem-me realmente, e eu quero esconder-me de ti; é impossível, tu viste-me. Não me olhaste apenas, viste-me, conheces-me, sabes a matéria de que sou feita, e no entanto continuas a correr umas cortinas nos teus olhos, nas tuas janelas.
Deixas-me à beira da loucura com tantas palavras que os teus olhos dizem, entras na minha mente, apenas a recordação deles me faz andar à roda.
São duas janelas que me fazem sentir à beira de um precipício, olhas-me e desvias o olhar, entranhas-te de um modo suave e eficaz, deixas-me sem saber o que fazer.
Não.
Não quero mais este abismo para mim.
Fecho os meus próprios olhos para sair daqui, mas não consigo.
O teu olhar penetra a minha mente, persegue-me, não me deixa em paz, continua a empurrar-me para o desconhecido mesmo que eu tente fugir.
Tu não me deixas.
Prendeste-me a ti com duas amêndoas escuras, ternas e quentes.
Estou louca.
A cada passo que dou, sinto a tua presença, os teus olhos indagadores.
Eis que chego ao último centímetro de chão antes do precipício que leva ao desconhecido.
Quero fugir de ti, quero chegar a ti.
E a culpa é do teu olhar. Um olhar que fere, que magoa.
Fecho os meus olhos.
Inspiro fundo.
E dou mais um passo.
Caio neste abismo.
O que me esperará no fim?


Texto para Fábrica de Letras, para o desafio "Silêncio"

terça-feira, 30 de março de 2010

Excerto da História que hei de publicar:

"Não era possível alguém acreditar que o ser humano era constituído apenas por uma dimensão, a física. Então onde se enquadravam os sentimentos, as emoções, as angústias? As tristezas e alegrias inerentes a qualquer ser vivo? E como se poderia descurar o treino da alma? Amélia não queria ficar oca por dentro, continuava a dizer, e se continuasse a passar tantas horas por dia a treinar apenas o seu corpo, rapidamente a sua alma estaria vazia. Não, isso não poderia ser. Por isso tinha querido ir ao parque. Precisava de viver muito mais, precisava de sentir muito mais, para poder criar a sua própria bagagem emocional que transporia para a dança. Não, ela não estava ali apenas por estar. Simplesmente descobrira que era chegada a altura de se dedicar mais à sua natureza interior. Captar cheiros, ruídos, sons, sabores, texturas. Tudo o que a enriquecesse interiormente seria, em altura própria, transformado em enriquecimento do que o seu corpo poderia fazer ao som da música. Precisava de se sentir em comunhão com o que a rodeava. Comunhão esta que se traduziria numa perfeita fusão do seu ser com a energia criadora que rodeava tudo e todos. Ela precisava de sentir a seiva que corria numa flor, precisava de sentir uma folha a ser abanada pelo vento, precisava de sentir os cisnes que no lago à sua frente nadavam, precisava de sentir a quietude das pessoas sentadas nos bancos em seu redor, precisava de sentir o que era ser um raio de sol a banhar as pessoas, precisava de sentir a dor de uma planta arrancada pela raiz, precisava de se tornar una com a Natureza e com as pessoas, fundir a sua alma com tudo e todos. Só assim, dizia, o seu corpo seria a legenda do seu interior.


Laura escutava a sua amiga, não fazendo ideia do quão profunda ela se estava a tornar a cada dia que passava. Começou a admirá-la ainda mais, pois se até aí vira apenas Mia como uma menina doce que dançava por prazer e com um dom que nem todos tinham, apercebia-se agora de que era muito mais que isso. Apercebia-se que estava defronte de um ser humano verdadeiramente completo, que queria desenvolver-se e conhecer-se ao máximo, explorar as suas capacidades físicas e psicológicas, ver o que podia fazer e até onde podia ir. Respeitando o desejo de Mia, Laura ficou apenas ao seu lado, vendo a paz que se espelhava no rosto ao seu lado e sentindo-se de certo modo infantil por não conseguir sentir toda essa necessidade que Mia afirmava (e mostrava, sem dúvida alguma) sentir.

Entretanto, Mia calara-se. Tudo nela era agora meditação. Inspirando, expirando, sentindo na pele e no ser o que ao seu redor se passava. Tentando imaginar e visualizar o seu Eu, a sua essência, sair de dentro da sua redoma física e tocar cada partícula visível e invisível que rodeava as duas amigas, sentadas lado a lado. Tentando visualizar-se a si própria, ao seu corpo, sentado no velho banco de madeira.

De repente, como se uma luz se abrisse na sua mente, começou a ter percepção do que a rodeava. Começou a sentir o que a rodeava. Começou a perder a noção de onde acabava ela e começava a Natureza e o Mundo. Manteve-se imóvel, quieta, acalmando o corpo e as batidas do coração, tomando consciência das suas duas metades. Os sentidos aguçavam-se, permitindo-lhe experienciar tudo de uma maneira nunca antes atingida. De repente, a Natureza explodiu nela como uma surpresa. Conseguia ouvir os pássaros nas distantes árvores, chilreando como pequeninas flautas, conseguia ouvir e sentir o vento nas copas das árvores como uma harpa a ser dedilhada por mil dedos ágeis, conseguia inclusivamente sentir a ternura entre os dois cisnes abraçados no lago como se fosse uma melodia terna tocada com amor num violoncelo envelhecido. Sentia a alegria dos jovens casais de namorados que passeavam por ali, sentia a excitação da rapariga que acabara de ser pedida em casamento, sentia o desespero daquela outra por ter visto o seu antigo amor de braço dado com a sua nova paixão… De repente, Mia não era já Mia apenas. Era uma taça, uma esponja, um receptáculo aberto a tudo quanto houvesse para sentir.

Assim ficou, durante muito tempo, até que lentamente acordou desse sonho acordado. Sentia-se calma, cheia, feliz.


- Sabes, Laura? Fez-me bem vir aqui!"

Batalha perdida

Fecho os olhos.
Estou decidida a dormir, o cansaço que cobre o meu corpo é demasiado grande. Sinto as pernas dormentes, as costas doridas, os braços pesados, os olhos ardentes.
Fecho os olhos e quero dormir.
Mas o meu cérebro desperta. O corpo dorme, o cérebro e a mente estão acordados, activos, com energia a mais.
Fecho os olhos, e de repente acordo mais que durante as horas em que o sol brilha no meu dia. A minha mente vagueia, está atenta a cada galho que estala lá fora, a minha audição cresce e aumenta, ouve cada susurrar do vento em contacto com as árvores. Oiço o relógio silencioso que não tenho no quarto.
Oiço o tempo a passar. Entre cada segundo que o ponteiro inexistente bate, sinto a duração de um século.
Viro-me.
Quero dormir. Amanhã tenho de me levantar cedo, já sei que me vai doer a cabeça.
Fecho os olhos com mais força.
Tento adormecer o meu corpo. Forçar a insensibilidade. Digo para mim que os meus pés estão a dormir.
Mas a minha mente está desperta.
Quanto mais tento dormir, mais acordo.
Vou tentar outra abordagem.
Tento ficar acordada. Não adormeço.
Vou querer adormecer agora as minhas pernas. Milímetro a milímetro, centímetro a centímetro.
Não consigo.
Sinto-me desperta, concentrada, preparada para uma qualquer acção que ainda não identifico.
Este silêncio que me rodeia, no escuro da noite mais densa, é muito ruidoso e não me deixa dormir.
Acendo a televisão.
Tomo um calmante e abro um livro.
Cada vez o sono vai mais longe, cada vez estou mais cansada de lutar contra esta insónia que todas as noites me ataca.
Não consigo dormir.
Estou acordada, estafada, exausta, desperta.
A minha mente não se desliga do dia que passou.
Tento uma oração. Não resulta, estou tão cansada que me perco a meio.
Recomeço com a cantilena de quando era tão pequenina e tinha que decorar a tabuada. Digo a tabuada toda três vezes. É um erro, de cada vez que a digo estou mais desperta.
Tiro então o meu diário da gaveta, e escrevo, escrevo, escrevo.
Quanto mais escrevo, mais acordada estou.
Praguejo.
Tudo à minha volta é silêncio, um silêncio desesperante que me faz querer gritar de terror! Quero dormir!
Não consigo.
Estou cada vez mais desperta, estou cada vez mais acordada, cada vez falta menos para o despertador tocar.
Fora, começo a ouvir o canto dos primeiros pássaros da manhã.
O seu canto entranha-se em mim, faz-me desesperar porque só durmo no silêncio, e o silêncio não me deixou dormir nesta noite longa.
Cerro uma vez mais os olhos.
Desta feita para não deixar que as lágrimas de frustração me corram pela cara.
Estou cansada, tão cansada… e a minha mente ainda trabalha, não me dá um segundo de descanso.
Penso no meu local feliz, uma biblioteca, um livro, uma folha de papel e uma caneta, uma lareira, vejo o fogo a crepitar, sinto o calor dele a envolver-me, oiço a madeira ser lambida e afagada pelas chamas, aquele barulho tão característico de quando começa a estalar, a cor do fogo entra pelos meus olhos, afinal não é o fogo, são os primeiros raios de sol que entram pela minha janela, e eu estou cansada, tão cansada, e finalmente fecho os olhos, acariciada por essa luz morna do sol-fogo, e de repente o despertador toda.
A insónia venceu-me, nada dormi, levanto-me estafada desta batalha que perdi.
Há um dia de trabalho pela frente.

sábado, 27 de março de 2010

E de repente...

Fecho os olhos. Inspiro profundamente e obrigo-me a esquecer do mundo que me rodeia. Concentro-me apenas no bater do meu coração.
Em meu redor, uma sala cheia, um burburinho imenso, conversas cruzadas, uma tosse e um espirro, talvez um bebé  a chorar.
Mas fecho os olhos e concentro-me.
Na minha cabeça, vou eliminando todos os sons. Penso na minha respiração, nos músculos que se contraem e se expandem cada vez que inspiro e expiro. Forço-me a visualizá-los.
Eis que já não oiço o bebé a chorar de fome e de sono.
Penso no meu coração, forço-me a olhar para ele enquanto trabalha mecanicamente.
Eis que já não oiço o senhor idoso a tossir nem aquela mulher grávida a espirrar.
Fecho os olhos e obrigo-me a encontrar aquele silêncio, a aniquilar aquela sala enorme, cheia de público.
Aos poucos, o negro silêncio vai cobrindo aquele espaço tão iluminado e tão barulhento.
Devagar. Eis que estou a chegar ao meu mundo. O burburinho ainda está lá, mas em mim vai-se esbatendo devagar e aos poucos.
Continuo a pensar na minha respiração. No meu coração. Obrigo-me a visualizar de antemão todos os movimentos que as minhas mãos vão fazer. Penso no que quero transmitir.
Inspiro lentamente e expiro lentamente. As conversas cruzadas já não me afectam.
Na minha mente, que atingiu o silêncio que eu tanto procurei, nascem novos sons. Nasce o que vou tocar.
Inspiro uma vez mais.
A sala está agora completamente muda, completamente calada.
Ao silêncio que nasceu ali, junta-se o apagar lento das luzes.
De repente, existo só eu.
Eu e o meu instrumento.
Tudo está calado, mudo, silencioso, expectante.
E de repente...
Como se já não fosse eu, mas sim alguém a guiar-me... 
O silêncio é deliberadamente rompido, alguém pega nas minhas mãos e fá-las tocar.
E um novo silêncio, diferente, nasce naquele espaço.
Um silêncio apenas marcado pela minha música.
Sim... estou em silêncio... interpreto... estou em silêncio e em paz comigo mesma.
E quando acabo e a ovação do público é estrondosa, continuo a nada ouvir.
Estou no meu mundo, estou ainda a gozar a música, apenas essa ecoa na minha cabeça.
Tudo o resto é um filme mudo.

Escrito para a Fábrica de Letras, para o desafio "Silêncio".

quarta-feira, 24 de março de 2010

Um silêncio que dói

Ali estava. Imóvel. Só. Ao seu lado, nada mais que um simples acessório tecnológico, um telemóvel.
Com um sinal sonoro bem audível.
"Eu ligo-te, eu dou-te notícias, espera por mim".
Ali ficara ela, à espera. Em seu redor, nada senão um mudo mundo que nada lhe dizia.
As horas passavam.
As semanas arrastavam-se.
A sala, escura, imóvel.
Meses deram lugar a outros mais frios, e de novo o calor intenso abafava a sala.
Dentro, apenas ela. Ela e o seu telemóvel.
Um ciclo anual se passou, e mais outro, e por fim ainda mais um.
Nada mudava na sala isolada onde ela se encontrava.
Ela e o seu telemóvel, mudo, silencioso.
Um silêncio que lhe gritava mais alto que qualquer grito estridente.
Um silêncio que magoava mais que mil facas espetadas no coração.
Anos e anos depois, nada mudara. Apenas ela, esperando já sem esperança que o telemóvel, agora morto, rompesse o silêncio a que se havia submetido.
Nunca aconteceu.
Ali ficou... ali ficaram. Dois corpos inertes, mortos... silênciosos...

Para o desafio "Silêncio" (Março de 2010), da Fábrica das Letras.

Um silêncio inexistente.

E de repente há este silêncio.
Que relação antagónica temos! Vejo-me rodeada por silêncio a todas as horas do meu dia, tendo por única companhia a minha própria mente.
O silêncio povoa-se então de ruídos, músicas, cheiros e sons. É um silêncio ruidoso, como se invadisse a minha cabeça, como se ele próprio, silêncio, não tivesse direito a existir em mim. É um silêncio que se auto-aniquila.
Outras vezes é um silêncio que eu quero combater, que eu quero cheio de batalhas e de vigores, e ele não acede aos meus pedidos. Ele manda, é silencioso ou barulhento consoante os seus próprios desígnios.
Controla-me, sendo uma bênção ou uma maldição.
Não existo sem ele - mas existirá ele sem mim?
E no fim do silêncio imposto de um dia de trabalho, desejo outro tipo de silêncio. O silêncio da paz, da meditação. E não o alcanço, não neste mundo ruidoso, acelerado, frenético.
Silêncio imposto... silêncio necessário... silêncio desejado... silêncio odiado... Quantas definições para uma palavra tão pequena.
Quantas relações possíveis!
O silêncio de um telemóvel que se quer a tocar; o silêncio que há num grito mudo de ajuda, presente em actos desesperados e olhares vazios; o silêncio que nos agonia por todas as vozes interiores que nos povoam...

Silêncio...

Por muito imposto que seja, nunca existe. Porque por mais sós que estejamos, estamos sempre conosco. E nunca nos calamos perante nós próprios. A nossa voz até poderá não funcionar, os nossos ouvidos até poderão não poder escutar os sons que nos rodeiam. Mas em consciência, dentro de nós, nunca há silêncio.

Ainda bem. Por quê? Porque é a prova de que estamos vivos.

Escrito para o desafio do mês de Março de 2010 da Fábrica de Letras, subordinado ao tema "silêncio".