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segunda-feira, 24 de maio de 2010

Liberdade

Sento-me e sei que cheguei a casa. Cheguei ao meu destino, ao meu doce lar.
Sinto-me cansada e desiludida. Sinto-me fria e desconfortável.
Porém, ao chegar a este lugar, a este Templo, sei que cheguei ao meu lar.
Deixo que os suaves aromas a cores quentes e a corpos lavados se apoderem de mim.
Relaxo.
Relaxo e recordo. [As memórias fluem, dotadas de vida própria, como se não dependesse de mim bloqueá-las ou chamá-las.]
Como o mundo e a vida me pareciam maavilhosos!
A Liberdade tinha um forte cheiro a rosa que desabrocha e assemelhava-se a um cavalo selvagem e indomável. Forte. E sim, indubitavelmente branco, puro, fogoso, saudável, possante.
Ah!, mas como esse cavalo se mostrou frio e insensível para com todos os que o quiseram possuir pela força!
Era impossível, e eu devia sabê-lo.
Este cavalo nunca seria meu; aliás, nunca será.
Travei uma dura luta com ele.
Corri; acompanhei-o para todos os lugares, junto a ele dormi.
A sei lado acordei.
Juntos fomos felizes.
Juntos percorremos o Mundo.
Mas ele nunca foi meu.
Nunca o montei, nunca pertencemos realmente um ao outro. Tal como a tantos outros antes de mim, este cavalo acabava de renunciar à sua condição.
Contrasenso?
Não.
Acabo de perceber que, tal como tudo o resto, é uma questão de lógica.
Para eu o possuir e obter o que ele personificava, ele perderia o que era. Perdia a sua essência. Perdia-se a si próprio.
Qual seria então o preço do que eu ambicionava?
Seria necessário haver uma perda por parte de um ser vivo para eu obter o que tanto desejava?
Então não mais acordei junto dele.
Não mais dormi, aconchegando-me a ele.
Não mais percorremos terras e lugares
Então...
Então parti.
Fiz uma longa viagem de regresso.
Pensei em muita coisa.
Pensei no mistério da Vida e no modo ingóbil que alguns seres usam para humilhar, para rebaixar, para ferir física, mental e psicologicamente.
Tenho a certeza de que não há ninguém que escape a esta dura condição própria do ser humano.
Por quê?
Porque no fundo nunca seremos livres.
Nunca possuiremos tal cavalo branco, que tantas esperanças acalenta a tantos e tantos, do mais miserável escravo ao mais poderoso milionário.
Somos todos prisioneiros de algo.
Do Amor.
Da Ganância.
Da Ambição.
Da Vaidade.
Da Beleza.
Do Trabalho.
De um homem.
De uma mulher.
De um animal.
De uma Árvore.
De uma Planta.
Do Dinheiro.
Para onde quer que olhemos, somos prisioneiros.
Tudo o que é vivo e palpável neste mundo, tudo o que é racionalmente irracional ou irracionalmente racional é prisioneiro.
Durante a minha viagem pensei muito sobre isto. E não encontrei nada livre.
Uma flor depende da água e do sol.
Um pássaro depende da comida e do ninho.
Um Homem depende de amor, saúde, dinheiro, poder, chantagens, tanta coisa... roupas, carros, estradas.
Afinal, o mais racional dos seres é o menos livre.
Se racional equivale a preso... Será uma faculdade boa? Não seria melhor ser irracional, um animal selvagem, que depende apenas do que lhe é dado naturalmente e não daquilo que fabrica?
Será, afinal de contas, assim tão bom ser racional?
No fim da minha viagem, sentia-me desconfortável pelas conclusões a que chegara.
Dói-me a Liberdade que não possuo.
Dói-me a Liberdade que nunca possuí e nunca, numa eternidade de momentos, possuirei.
Sinto-me fria e desconfortável, e nem o doce calor do lar me conforta. Ele é apenas mais uma das coisas de que irremediavelmente dependo.
E então... tomo uma decisão.
Tal como o resto do Mundo, vou fingir que sou livre.
Vou deixar que me toquem, que me envolvam, que me amem, que me falem, que me ofereçam objectos, convencendo-me a mim própria de que é essa a minha vontade.
Fingindo que não dependo de nada se não de mim.
Fazendo de conta que o calor de lares e corpos que me rodeiam e envolvem apenas lá estão porque eu quero. [porque é essa a minha livre vontade].
Acreditando que não dependo deles.
E, no fundo, sabendo intimamente que não sou livre.
Tendo consciência, com a autoridade de saber adquirido, que apenas uma coisa é livre.
O cavalo branco, puro, fogoso, possante, chamado Liberdade. Só ele é livre.
Actuarei neste palco que é a Vida nunca me esquecendo disso mas tentando recalcá-lo.

Escrito a 13 de Março de 2003, aos 18 anos. As palavras entre parêntesis rectos referem-se ao que hoje acrescentei. Não o fiz mais para me manter o mais fiel possível à versão original do texto.



sábado, 22 de maio de 2010

A alma das palavras... a alma dos humanos... a nossa essência...

Mesa, mesa, mesa, mesa, mesa, mesa, mesa, mesa, mesa, mesa, mesa, mesa, mesa.
O que é isto, o que quer isto dizer?
Poste, poste, poste, poste, poste, poste, poste.
Sol, sol, sol, sol, sol, sol, sol, sol, sol, sol.
Lua, lua, lua, lua, lua, lua, lua, lua.
Riqueza, riqueza, riqueza, riqueza, riqueza.
Estranha similitude esta, entre palavras e essência humana.
Onde está a alma delas?
Onde está a nossa alma?
Onde perdemos a nossa alma, o nosso espírito?
Em que esquina sombria e por que preço nos vendemos?
A quem nos vendemos?
Ao Mal. Apenas pela compra da nossa alma ele se pode infiltrar em nós, levando-nos a cometer tais crimes e a desrespeitar o que de mais sagrado há, o mistério da Vida.
Por que nos vendemos nós?
Por ambição. Por dinheiro. Por inveja. Por prestígio. Por ganância. Por fama. Por fortuna. Por vingança. Por maldade.
Que interessa o motivo?
Motivo, motivo, motivo, motivo, motivo, motivo, motivo, motivo, motivo, motivo, motivo.
Onde está a alma desta palavra? Perdeu-se? Como é isso possível? Ela está aqui à minha frente, leio-a, releio-a, vejo cada uma das suas letras, mas nada encontro. Não há de que a sua alma se perdeu. Mas onde? Por quê? Por que motivo se vendeu?
Por que motivo nos vendemos nós?
Onde se encontra a alma das pessoas?
Onde se enconta a alma das palavras?
Por que motivo fugiu, permitindo que tão mau uso se fizesse das formas onde anteriormente estavam?
Uma palavra sem alma é como uma caixa vazia, oca. Pode-se fazer dela o que se quiser. Não importa. Não tem vida.
Um corpo sem alma é como uma palavra sem alma.
São dois mortos, interagindo um com o outro, sem se importar com a devastação que originam.
Por isso procurarei incessantemente a alma das coisas, a alma das palavras, a minha própria alma.
Procuro...
Alma, alma, alma, alma, alma.
Tento perceber onde se perdeu a alma, para a trazer de volta e assim fazer deste Mundo um sítio melhor.
Procuro.
Alma.
Procuro a alma.
Procuro...
Procuro...
Procuro...
Procuro...
Essência humana. Essência humana. Essência humana.

(Texto escrito a 13 de Março de 2003, aos 18 anos)





A irracionalidade racional do Homem e a luta pela dignidade.

Acordo e vejoa realidade tal como ela se me apresenta. Crua, nua, feroz, insensível e cruel. Por que tem tudo que ser assim? Tão duro? Por que não podemos nós ser como os pássaros, felizes porque cantam, felizes porque voam, felizes porque têm um ninho quente e aconchegante?
Será que os pássaros se ressentem porque têm penas vermelhas em vez de azuis? Será que percebem que por muito que façam nunca deixarão de ser pássaros? Será que se preocupam em saber como eram os seus antepassados ou como serão os seus descendentes daqui a milhões de anos? Será que se preocupam com a morte do sol ou com o desaparecimento da vida?
Ou, por outro lado, serão eles felizes com a sua ignorância cultural? Não é, pois, verdade que quanto menos sabemos mais felizes somos? Por que nos havemos de perguntar por que temos o que não queremos ou por que não temos o que queremos?
Por que ligaremos tanto às coisas materiais e menosprezamos as verdadeiramente importantes?
Na ânsia de ter, o Homem esquece-se de ser.
Se não somos, nunca teremos.
Por que não podemos nós ser como os pássaros, vivendo felizes com o que lhes é dado pela Mãe Natureza de acordo com as suas necessidades? Um pássaro nasce, cresce, reproduz-se e morre, dependendo unicamente do que lhe é oferecido.
Um pássaro não mata um da sua raça só porque o bico é maior ou as suas penas são brancas...
Por que não poderemos nós ser como os pássaros, espertas criações da Mãe Natureza, base de tudo, impulsionadora dos fluxos vitais que correm por cada fibra, por cada milímetro, cada lugar de cada organismo vivo, por mais ínfimo que seja?
Será que a nossa racionalidade, traço de unicidade entre a espécie humana, nos transporta automaticamente para a irracionalidade?
Por que não têm a felicidade, a alegria, o amor e a paz um doce e intenso cheiro a terra molhada, a floresta virgem, a camomila ou a alecrim?
Por que não poderemos nós ser como os pássaros, felizes, despreocupados, vivendo no meio de tais aromas?
Por que teremos nós de ser, a um tempo, racionais e irracionais, construtores e destruidores, inteligentes e acéfalos?
Por que nos preocupamos tanto com a estética e nos desligamos da ética?
Que interessa se a nossa cor de pele é escura ou clara, se somos fortes ou fracos, bonitos ou feios? Tais adjectivos simplificam em demasia o que é naturalmente complexo.
Tudo é efémero. Nunca somos nós a passar pelo tempo, é sempre o tempo que passa por nós. E o físico, o estético, desaparecem. Tal como quando repentinamente se apaga uma luz ou uma vela.
Fica apenas a parte ética, espiritual. Ficam as memórias, ficam as recordações. Mas ficam no escuro, pois é tão raro sobreviverem sem a luz!
É por isso que temos que lutar. Que importa se somos ricos ou pobres! Não é o dinheiro que compra o que de melhor temos. Não é o dinheiro que compra a nossa dignidade.
Nunca poderemos esquecer que a dignidade é tudo o que resta da destruição para que nos encaminhamos.
Sim.
Serei Digna.
Serei digna e será este o meu passaporte para viver como os pássaros.
Parece-me que já consigo sentir, ao fundo do túnel, o adocicado cheiro a camomila, que me vem convidar a viver em paz e harmonia perante o mundo que me rodeia e entre odores que me acalmam e me fazem subir ao Paraíso.
Serei digna.
Serei digna.
Serei digna.
Chegarei ao Paraíso.
Serei digna...


Texto escrito em Março de 2003 (aos 18 anos)




quarta-feira, 19 de maio de 2010

Sinto, penso, acredito, creio, duvido, aceito.

Entro na sala.
Sinto-a cheia, não obstante as poucas, pouquíssimas, quase nenhumas, pessoas que lá se encontram.
Estou nervosa, consciente de cada traço do meu corpo, de cada cabelo fora do sítio, de cada estria que me rasga a pele, num movimento cruel e insensível ao que eu desejo.
Sinto os pares de olhos incisivos a pousarem sobre mim, num riso cruel, gozando do cenário que à sua frente têm.
Sei que tenho que me acalmar, mas não consigo.
O coração bate cada vez mais forte, e sinto as pequenas gotas de suor a formarem-se nas palmas das minhas mãos, que se entrelaçam sem que eu tenha sobre elas qualquer domínio físico ou motor. Sou eu ali, e sou eu fora de mim, a observar-me, a racionalmente tentar controlar as emoções que perpassam o meu ser emocional.
Não me consigo acalmar, a garganta começa a sufocar e já nem sei por que razão estou assim exposta, naquela sala minúscula, semi-vazia mas que sinto cheia.
Consigo ver os sorrisos dos que lá estão, consigo sentir o cheiro da superioridade que julgam ter em relação a mim, a superioridade física, a superioridade mental, a superioridade hierárquica.
Então...
Então tento falar. A minha voz não me responde.
Tento acalmar as batidas cardíacas. Acalma-te!, grito mentalmente para mim própria, sem que nenhum efeito se veja.
Não tenho outro remédio.
Uma vez mais, tenho que me colocar à prova e dispor de meros segundos, compridos como milénios, para me reencontrar.
Fecho os meus olhos e inspiro, não querendo saber se me observam ou não. Estou consciente de tudo, muito mais do que os que me rodeiam possam pensar. Mentalmente, penso que não há pessoas superiores ou inferiores, há pessoas. Mentalmente, penso que não sou inferior a ninguém.
Mentalmente, numa voz cortante, gravo a fogo no meu coração e na minha mente "eu sou capaz".
E então abro os olhos.
Enfrento o que me enfrenta, numa luta de igual para igual.
E venço.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

A paixão de uma vida

Tocar...

Acariciar suavemente as teclas negras e brancas de um teclado, de um piano...
Retirar desse amante sons, melodias, experiências, estados de alma, consolos...
Como pode uma coisa tão física, tão material, tão terreste, traduzir por palavras não ditas a essência de cada um de nós? Fazer-nos rodar, e rodar, e rodopiar, como se quiséssemos agarrar o fundo do nosso ser, ainda que nos seja verdadeiramente impossível conhecê-lo?
Que outra arte, que outro som, transmite tão bem a dualidade humana, sem ser a Música? Ela, como nós, é a um tempo humana e extra-humana, física e espiritual, está em nós e fora de nós, toca-nos e não se deixa ser tocada. Transmite quem somos quando nem nós próprios o sabemos, influencia-nos sem o podermos controlar ou evitar ou forçar.
Nós não a criamos, ela não se deixa ser criada, simplesmente a redescobrimos na sua essência e inocência original, como se atingíssemos o mundo das Ideias de Platão, tal como David aprisionado no bloco de mármore e liberto por Miguel Ângelo.
Assim foram Bach, Mozart, Beethoven, Chopin...todos esses génios, escultores do som, almas superiores com experiências de tantas vidas, redescobrindo essa música eterna, que nos diz sem dizer, que nos fala sem falar, que nos mostra quem somos e o que sentimos antes de nós próprios o sabermos.
Todos nós nos procuramos incansavelmente, tal como procuramos entender as palavras não ditas mas tão presentes, concretas e físicas, de uma obra musical... Ela é simultaneamente corpo e espírito, físico e etéreo, da mesma maneira que nós somos duplos, um corpo terrestre e uma alma qye absorve todas as experiências...
Que outra razão para que ela, Música, nos toque tanto? Nos eleve tanto? Que outra razão para batalharmos tanto para a conhecer, para a aprender? Doidos... como se isso fosse possível... como se nos pudéssemos realmente conhecer a nós próprios! Seremos eternamente auto-desconhecidos - e assim é a essência da Música.
Toca-nos, mas não nos deixa tocá-la... é no entanto na nossa eterna busca pelo que ela é que nos auto-procuramos.
Ela traz no seu seio toda a História da Humanidade, todas as alegrias e tristezas, todas as fatalidades e milagres, todos os sucessos e fracassos, todos os sentimentos humanos bons e maus, precisamente porque é superior a nós.
É na sua busca que nos buscamos, é na sua prática e aperfeiçoamento que nos aperfeiçoamos, é cada vez que a libertamos do seu estado físico e terrestre que nos auto-libertamos deste corpo e deste mundo que não escolhemos e atingimos um breve relance do que há para além disto; é nesta procura que a nossa alma conhece verdadeiramente autênticos momentos de liberdade e felicidade...

Repescagem de uma postagem da Secretária, agora para o desafio "Paixão" da Fábrica das Letras.