Quantos andam aqui?

terça-feira, 30 de março de 2010

Excerto da História que hei de publicar:

"Não era possível alguém acreditar que o ser humano era constituído apenas por uma dimensão, a física. Então onde se enquadravam os sentimentos, as emoções, as angústias? As tristezas e alegrias inerentes a qualquer ser vivo? E como se poderia descurar o treino da alma? Amélia não queria ficar oca por dentro, continuava a dizer, e se continuasse a passar tantas horas por dia a treinar apenas o seu corpo, rapidamente a sua alma estaria vazia. Não, isso não poderia ser. Por isso tinha querido ir ao parque. Precisava de viver muito mais, precisava de sentir muito mais, para poder criar a sua própria bagagem emocional que transporia para a dança. Não, ela não estava ali apenas por estar. Simplesmente descobrira que era chegada a altura de se dedicar mais à sua natureza interior. Captar cheiros, ruídos, sons, sabores, texturas. Tudo o que a enriquecesse interiormente seria, em altura própria, transformado em enriquecimento do que o seu corpo poderia fazer ao som da música. Precisava de se sentir em comunhão com o que a rodeava. Comunhão esta que se traduziria numa perfeita fusão do seu ser com a energia criadora que rodeava tudo e todos. Ela precisava de sentir a seiva que corria numa flor, precisava de sentir uma folha a ser abanada pelo vento, precisava de sentir os cisnes que no lago à sua frente nadavam, precisava de sentir a quietude das pessoas sentadas nos bancos em seu redor, precisava de sentir o que era ser um raio de sol a banhar as pessoas, precisava de sentir a dor de uma planta arrancada pela raiz, precisava de se tornar una com a Natureza e com as pessoas, fundir a sua alma com tudo e todos. Só assim, dizia, o seu corpo seria a legenda do seu interior.


Laura escutava a sua amiga, não fazendo ideia do quão profunda ela se estava a tornar a cada dia que passava. Começou a admirá-la ainda mais, pois se até aí vira apenas Mia como uma menina doce que dançava por prazer e com um dom que nem todos tinham, apercebia-se agora de que era muito mais que isso. Apercebia-se que estava defronte de um ser humano verdadeiramente completo, que queria desenvolver-se e conhecer-se ao máximo, explorar as suas capacidades físicas e psicológicas, ver o que podia fazer e até onde podia ir. Respeitando o desejo de Mia, Laura ficou apenas ao seu lado, vendo a paz que se espelhava no rosto ao seu lado e sentindo-se de certo modo infantil por não conseguir sentir toda essa necessidade que Mia afirmava (e mostrava, sem dúvida alguma) sentir.

Entretanto, Mia calara-se. Tudo nela era agora meditação. Inspirando, expirando, sentindo na pele e no ser o que ao seu redor se passava. Tentando imaginar e visualizar o seu Eu, a sua essência, sair de dentro da sua redoma física e tocar cada partícula visível e invisível que rodeava as duas amigas, sentadas lado a lado. Tentando visualizar-se a si própria, ao seu corpo, sentado no velho banco de madeira.

De repente, como se uma luz se abrisse na sua mente, começou a ter percepção do que a rodeava. Começou a sentir o que a rodeava. Começou a perder a noção de onde acabava ela e começava a Natureza e o Mundo. Manteve-se imóvel, quieta, acalmando o corpo e as batidas do coração, tomando consciência das suas duas metades. Os sentidos aguçavam-se, permitindo-lhe experienciar tudo de uma maneira nunca antes atingida. De repente, a Natureza explodiu nela como uma surpresa. Conseguia ouvir os pássaros nas distantes árvores, chilreando como pequeninas flautas, conseguia ouvir e sentir o vento nas copas das árvores como uma harpa a ser dedilhada por mil dedos ágeis, conseguia inclusivamente sentir a ternura entre os dois cisnes abraçados no lago como se fosse uma melodia terna tocada com amor num violoncelo envelhecido. Sentia a alegria dos jovens casais de namorados que passeavam por ali, sentia a excitação da rapariga que acabara de ser pedida em casamento, sentia o desespero daquela outra por ter visto o seu antigo amor de braço dado com a sua nova paixão… De repente, Mia não era já Mia apenas. Era uma taça, uma esponja, um receptáculo aberto a tudo quanto houvesse para sentir.

Assim ficou, durante muito tempo, até que lentamente acordou desse sonho acordado. Sentia-se calma, cheia, feliz.


- Sabes, Laura? Fez-me bem vir aqui!"

Batalha perdida

Fecho os olhos.
Estou decidida a dormir, o cansaço que cobre o meu corpo é demasiado grande. Sinto as pernas dormentes, as costas doridas, os braços pesados, os olhos ardentes.
Fecho os olhos e quero dormir.
Mas o meu cérebro desperta. O corpo dorme, o cérebro e a mente estão acordados, activos, com energia a mais.
Fecho os olhos, e de repente acordo mais que durante as horas em que o sol brilha no meu dia. A minha mente vagueia, está atenta a cada galho que estala lá fora, a minha audição cresce e aumenta, ouve cada susurrar do vento em contacto com as árvores. Oiço o relógio silencioso que não tenho no quarto.
Oiço o tempo a passar. Entre cada segundo que o ponteiro inexistente bate, sinto a duração de um século.
Viro-me.
Quero dormir. Amanhã tenho de me levantar cedo, já sei que me vai doer a cabeça.
Fecho os olhos com mais força.
Tento adormecer o meu corpo. Forçar a insensibilidade. Digo para mim que os meus pés estão a dormir.
Mas a minha mente está desperta.
Quanto mais tento dormir, mais acordo.
Vou tentar outra abordagem.
Tento ficar acordada. Não adormeço.
Vou querer adormecer agora as minhas pernas. Milímetro a milímetro, centímetro a centímetro.
Não consigo.
Sinto-me desperta, concentrada, preparada para uma qualquer acção que ainda não identifico.
Este silêncio que me rodeia, no escuro da noite mais densa, é muito ruidoso e não me deixa dormir.
Acendo a televisão.
Tomo um calmante e abro um livro.
Cada vez o sono vai mais longe, cada vez estou mais cansada de lutar contra esta insónia que todas as noites me ataca.
Não consigo dormir.
Estou acordada, estafada, exausta, desperta.
A minha mente não se desliga do dia que passou.
Tento uma oração. Não resulta, estou tão cansada que me perco a meio.
Recomeço com a cantilena de quando era tão pequenina e tinha que decorar a tabuada. Digo a tabuada toda três vezes. É um erro, de cada vez que a digo estou mais desperta.
Tiro então o meu diário da gaveta, e escrevo, escrevo, escrevo.
Quanto mais escrevo, mais acordada estou.
Praguejo.
Tudo à minha volta é silêncio, um silêncio desesperante que me faz querer gritar de terror! Quero dormir!
Não consigo.
Estou cada vez mais desperta, estou cada vez mais acordada, cada vez falta menos para o despertador tocar.
Fora, começo a ouvir o canto dos primeiros pássaros da manhã.
O seu canto entranha-se em mim, faz-me desesperar porque só durmo no silêncio, e o silêncio não me deixou dormir nesta noite longa.
Cerro uma vez mais os olhos.
Desta feita para não deixar que as lágrimas de frustração me corram pela cara.
Estou cansada, tão cansada… e a minha mente ainda trabalha, não me dá um segundo de descanso.
Penso no meu local feliz, uma biblioteca, um livro, uma folha de papel e uma caneta, uma lareira, vejo o fogo a crepitar, sinto o calor dele a envolver-me, oiço a madeira ser lambida e afagada pelas chamas, aquele barulho tão característico de quando começa a estalar, a cor do fogo entra pelos meus olhos, afinal não é o fogo, são os primeiros raios de sol que entram pela minha janela, e eu estou cansada, tão cansada, e finalmente fecho os olhos, acariciada por essa luz morna do sol-fogo, e de repente o despertador toda.
A insónia venceu-me, nada dormi, levanto-me estafada desta batalha que perdi.
Há um dia de trabalho pela frente.

sábado, 27 de março de 2010

E de repente...

Fecho os olhos. Inspiro profundamente e obrigo-me a esquecer do mundo que me rodeia. Concentro-me apenas no bater do meu coração.
Em meu redor, uma sala cheia, um burburinho imenso, conversas cruzadas, uma tosse e um espirro, talvez um bebé  a chorar.
Mas fecho os olhos e concentro-me.
Na minha cabeça, vou eliminando todos os sons. Penso na minha respiração, nos músculos que se contraem e se expandem cada vez que inspiro e expiro. Forço-me a visualizá-los.
Eis que já não oiço o bebé a chorar de fome e de sono.
Penso no meu coração, forço-me a olhar para ele enquanto trabalha mecanicamente.
Eis que já não oiço o senhor idoso a tossir nem aquela mulher grávida a espirrar.
Fecho os olhos e obrigo-me a encontrar aquele silêncio, a aniquilar aquela sala enorme, cheia de público.
Aos poucos, o negro silêncio vai cobrindo aquele espaço tão iluminado e tão barulhento.
Devagar. Eis que estou a chegar ao meu mundo. O burburinho ainda está lá, mas em mim vai-se esbatendo devagar e aos poucos.
Continuo a pensar na minha respiração. No meu coração. Obrigo-me a visualizar de antemão todos os movimentos que as minhas mãos vão fazer. Penso no que quero transmitir.
Inspiro lentamente e expiro lentamente. As conversas cruzadas já não me afectam.
Na minha mente, que atingiu o silêncio que eu tanto procurei, nascem novos sons. Nasce o que vou tocar.
Inspiro uma vez mais.
A sala está agora completamente muda, completamente calada.
Ao silêncio que nasceu ali, junta-se o apagar lento das luzes.
De repente, existo só eu.
Eu e o meu instrumento.
Tudo está calado, mudo, silencioso, expectante.
E de repente...
Como se já não fosse eu, mas sim alguém a guiar-me... 
O silêncio é deliberadamente rompido, alguém pega nas minhas mãos e fá-las tocar.
E um novo silêncio, diferente, nasce naquele espaço.
Um silêncio apenas marcado pela minha música.
Sim... estou em silêncio... interpreto... estou em silêncio e em paz comigo mesma.
E quando acabo e a ovação do público é estrondosa, continuo a nada ouvir.
Estou no meu mundo, estou ainda a gozar a música, apenas essa ecoa na minha cabeça.
Tudo o resto é um filme mudo.

Escrito para a Fábrica de Letras, para o desafio "Silêncio".

quarta-feira, 24 de março de 2010

Um silêncio que dói

Ali estava. Imóvel. Só. Ao seu lado, nada mais que um simples acessório tecnológico, um telemóvel.
Com um sinal sonoro bem audível.
"Eu ligo-te, eu dou-te notícias, espera por mim".
Ali ficara ela, à espera. Em seu redor, nada senão um mudo mundo que nada lhe dizia.
As horas passavam.
As semanas arrastavam-se.
A sala, escura, imóvel.
Meses deram lugar a outros mais frios, e de novo o calor intenso abafava a sala.
Dentro, apenas ela. Ela e o seu telemóvel.
Um ciclo anual se passou, e mais outro, e por fim ainda mais um.
Nada mudava na sala isolada onde ela se encontrava.
Ela e o seu telemóvel, mudo, silencioso.
Um silêncio que lhe gritava mais alto que qualquer grito estridente.
Um silêncio que magoava mais que mil facas espetadas no coração.
Anos e anos depois, nada mudara. Apenas ela, esperando já sem esperança que o telemóvel, agora morto, rompesse o silêncio a que se havia submetido.
Nunca aconteceu.
Ali ficou... ali ficaram. Dois corpos inertes, mortos... silênciosos...

Para o desafio "Silêncio" (Março de 2010), da Fábrica das Letras.

Um silêncio inexistente.

E de repente há este silêncio.
Que relação antagónica temos! Vejo-me rodeada por silêncio a todas as horas do meu dia, tendo por única companhia a minha própria mente.
O silêncio povoa-se então de ruídos, músicas, cheiros e sons. É um silêncio ruidoso, como se invadisse a minha cabeça, como se ele próprio, silêncio, não tivesse direito a existir em mim. É um silêncio que se auto-aniquila.
Outras vezes é um silêncio que eu quero combater, que eu quero cheio de batalhas e de vigores, e ele não acede aos meus pedidos. Ele manda, é silencioso ou barulhento consoante os seus próprios desígnios.
Controla-me, sendo uma bênção ou uma maldição.
Não existo sem ele - mas existirá ele sem mim?
E no fim do silêncio imposto de um dia de trabalho, desejo outro tipo de silêncio. O silêncio da paz, da meditação. E não o alcanço, não neste mundo ruidoso, acelerado, frenético.
Silêncio imposto... silêncio necessário... silêncio desejado... silêncio odiado... Quantas definições para uma palavra tão pequena.
Quantas relações possíveis!
O silêncio de um telemóvel que se quer a tocar; o silêncio que há num grito mudo de ajuda, presente em actos desesperados e olhares vazios; o silêncio que nos agonia por todas as vozes interiores que nos povoam...

Silêncio...

Por muito imposto que seja, nunca existe. Porque por mais sós que estejamos, estamos sempre conosco. E nunca nos calamos perante nós próprios. A nossa voz até poderá não funcionar, os nossos ouvidos até poderão não poder escutar os sons que nos rodeiam. Mas em consciência, dentro de nós, nunca há silêncio.

Ainda bem. Por quê? Porque é a prova de que estamos vivos.

Escrito para o desafio do mês de Março de 2010 da Fábrica de Letras, subordinado ao tema "silêncio".