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quinta-feira, 15 de abril de 2010

Troveja, lá fora.
Aqui estou quente, confortável, tapada, morna.
Lá fora, o vento uiva, os trovões ribombam, a chuva fustiga a janela.
Insensivelmente, quisera eu estar lá fora.
Sentir essas grossas pingas de água baterem-me na cara.
Lavarem-me.
Vou lá para fora, não me interessa o calor que deixo para trás.
Vou lá para fora, não me interessa o certo que aqui tenho, o conforto, os lençóis.
Quero sentir-me una com a chuva que cai, com as nuvens pesadas e densas que cobrem o céu imenso. Sentir-me una com este vento furioso, eu própria sou o vento furioso, não a calma brisa que afaga as folhas das árvores, mas esta intempérie que quebra ramos de madeira fortes e antigos.
Deixo a minha alma voar, deixo o meu corpo quebrar ao sabor do vento cruel.
Não sei para onde vou, não sei que caminhos estou a percorrer.
O certo, o conforto, o estável...
Tudo ficou lá atrás. Muito lá atrás.
Quero lembrar-me de como era o meu quarto. De como eram os meus lençóis. Não consigo, a memória falha-me.
Seria realmente quente?
Já não o sei.
Sei que aqui fora há trovoada.
Fui eu que escolhi estar aqui fora. Fui eu que escolhi a Natureza sobre o que conhecia.
E de repente...
De repente sinto-me acolhida.
Não, a chuva já não me molha, as pedras já não ferem os meus pés descalços, a pequena mochila que trouxe comigo já não me pesa porque se desintegrou. O vento já não me assusta e os raios não me acertam.
Sinto que esta força, este espírito, esta energia, esta Natureza, me aceita como filha dela.
Tudo o que é acessório desapareceu.
Estou simplesmente eu...
Eu, a minha alma, o meu espírito.
Continua a trovejar, mas por qualquer razão este sempre foi o meu som preferido.
A cada trovão, uma sensação nova de acolhimento.
Quão desconfortáveis agora me parecem aqueles lençóis!
Quão estranhos aqueles apetrechos que usava nos meus pés.
Agora sinto esta terra debaixo de mim.
Agora sou a tempestade que assola a terra, sou o vento que bate nas árvores, sou a chuva que tudo molha e limpa, porque eu própria estou molhada e limpa.
Estas gotas de água, primeiramente incómodas, formam a minha nova roupa.
Aqui estou.
Troveja.
A noite é escura, mas eu tudo consigo ver, tudo consigo sentir.
Troveja.
Mas eu própria sou o trovão, não há como diferenciar o seu rugido da minha voz.
Vejo-me vestida dos mais cintilantes e puros diamantes, as gotas de água que escorrem furiosamente por cada folha, por cada tronco, e ao mesmo tempo eu sou cada folha, cada tronco.
Quão distante me parece o conforto longínquo de um quarto, de uns sapatos, de um aquecedor...
Agora estou em casa...
A Natureza acolheu-me.
A ela regresso.
Troveja, lá fora.
Trovejo... trovejo, na tentativa de chamar mais almas perdidas para que a mim, para que à Natureza, regressem, saindo do abismo triste e escuro construído pela raça humana...

10 comentários:

  1. A sede de regresso à Natureza pela raça humana. Na verdade nunca a deixámos. Apenas a transformámos a nosso belo prazer para ficarmos melhores connosco próprios. A realidade é que muitos de nós não gostaram dessa transformação. Daí o ansioso regresso.
    Muito bem o texto, vêm mesmo de lá de dentro. Gostei. Beijinhos.

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  2. Muito obrigada Carlos =)
    De facto, cada vez que chove e troveja (como ontem à noite quando escrevi estas linhas), fico mais pensativa... =)

    Beijinhos

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  3. Não gosto de trovoada...

    Mas o texto levou a minha imaginação a "ver-me" na rua, molhada a agradecer o mau tempo, a correr-me a água pelo corpo, a sentir-me livre...

    Enfim uma imagem linda que agora tive.

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  4. Que bela imagem que criaste, sem dúvida :)... e com uma mensagem muito forte, diria mesmo "nobre"... mas ao mesmo tempo envolto toda em mistério, deixando quase pensar no sobre-natural (não é bem a palavra certa, mas chegam lá... ou seja, faz lembrar um pouco aquelas lendas de pessoas com forma de arvores, por exemplo, ou será árvores que parecem pessoas? lol...). 5 estrelas :)

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  5. Belo, muito belo o texto. A Natureza no seu esplendor, perfeita em si mesma, plena dentro de nós.
    Parabéns, Rita.

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  6. Mag: obrigada! =) Foi um dos textos que mais gostei de escrever, talvez por reflectir muito o que eu própria desejo neste momento. Nem todos os textos aqui postados são sobre mim, mas este era =)

    Selma: Sem dúvida essa imagem é das coisas que mais nos libertam!

    Elias: porquê nobre entre aspas? Não creio que haja mistério... mas sim, tens razão quando falas naquelas lendas de pessoas que se "transformam" em elementos da Natureza. Acho que isso falta muito à espécie humana hoje em dia...

    Obrigada pelos vossos comentários!

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  7. Gostei imenso do teu Blog... Parabéns, e continua a escrever...

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  8. Ba Bocage: obrigada! Bem vindo ao meu blog! Este não é o meu blog principal, pelo que nem sempre tenho tempo ou inspiração para o actualizar como gostaria. Não obstante, tenciono continuar até que a mão me doa! Obrigada pela tua visita! Beijinhos

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  9. Adoro a natureza selvagem..que me faz sentir pequenino.

    Gostei do teu blog...
    Beijinhos...

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  10. António: Bem vindo ao meu blog! Desculpa só responder agora, mas tenho andado assim a atirar para o ocupada, sem tempo para nada :s

    Ainda bem que gostaste, volta sempre que quiseres!!

    Beijinhos

    Rita

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